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sábado, 16 de julho de 2011

RETALHOS COLORIDOS


No dia em que minha irmã ganhou a bola colorida, não sei se seus olhos brilharam, muito menos se ela foi tomada pela felicidade. Sei apenas que, ao ver a madrinha dela entrar lá em casa com aquele presente multicor, fiquei extasiada. Nunca havia visto nada igual ou parecido. Minha irmã, por sua vez, olhou-me com aquele ar de superioridade, olhar que me lançava desde o dia em que surgi no mundo, acho. Olhar de quando me chamava de mau elemento. Fiz jus ao apelido e furei a bola naquele dia mesmo.

O furo foi tão milimétrico que a senhora custou a perceber o lento esvaziamento da bola. A bola esvaziava e o relacionamento entre mim e minha irmã, se é que existia algum, se esvaziava também. Pouco a pouco, a bola perdia seu colorido, ficava assim meio sem graça, sem vida. Para escapar da fúria da senhora, lembra, fui brincar com a filha da vizinha. Fiquei lá até o olhar da senhora encontrar-se com o meu e...

- Criança pode ter inveja, mãe?

Silêncio.

- Filha?

- Sempre quis saber o porquê de ela não gostar de mim, o porquê de me tratar mal, de me tratar com aquele ódio no olhar, com o corpo fumegando como se vivesse no calor do inferno.

- Eu confesso que não sei filha (ela disse). Todos foram criados da mesma maneira, ninguém nunca teve luxo ou regalia. Eu não sei.

- Talvez meu pai soubesse (disse). Mas eu devia ter perguntado antes de ele também ir-se embora.

Meu pai dizia que um dia ia embora dormindo. Eu, pequena, ficava intrigada com aquilo. Como alguém poderia ir embora dormindo? E pra onde? Mais tarde, aprendi que havia um transtorno, doença, sei lá, que fazia com que as pessoas caminhassem enquanto dormiam. Algumas até realizavam tarefas em total estado de sono e nem se davam conta disso. Porém, meu pai não sofria desse mal. Nunca o vi caminhar pela casa ou realizar atividade que fosse em estado de dormência. Assim, perguntei-lhe, certa vez, que história era essa de ir embora dormindo.

- Ora, minha filha, é simples; fecho os olhos, durmo e naturalmente perco a hora de acordar.

E foi assim. Um dia ele dormiu e perdeu de fato aquela hora.

Eu também já quis perder essa tal hora de acordar. Principalmente quando pressentia minha irmã se aproximando da porta do meu quarto. Seu corpo era tão rígido que eu podia ouvi-lo à distância, em marcha pelos corredores da casa. Mas eu sempre acordo, sempre...

Só que ontem não. Ontem, eu jurei que se não perdesse a tal hora de acordar, reuniria todas as forças e voltaria pra casa.

- E assim você acha que volta?

- Acho não, tenho certeza. A senhora está aqui não está? Isso não é esquisitice da minha cabeça.

- Mas...

- Não, mãe, nem tente me convencer do contrário. Não há mais tempo. Além do mais, cansei e me arrastar até aqui não foi tarefa das mais fáceis.

- Eu não posso fazer nada?

Olhei para minha mãe e, por um instante, vi minha infância através dos olhos dela. Diante do meu silêncio, ela perguntou novamente:

- Eu não posso fazer nada?

Enquanto perguntava, ora passava as mãos nos meus cabelos ora secava minhas lágrimas com as costas de uma das mãos.

- Sabe mãe, fraquejei e aquilo que mais temia aconteceu. Sempre tive medo, pavor mesmo, a senhora sabe, de depender do ódio de minha irmã. Depender de sua ajuda na realização das tarefas e atividades mais básicas. Infelizmente, enfraqueci, minhas forças minaram e hoje nem uma colher de sopa, um copo d’água consigo levar à boca.

Outro dia, sabe, ela entrou no meu quarto com o prato de comida. Ela sempre trazia a comida muito tempo depois de tê-la terminado. Deixava a comida gelar pra trazer. Chegou a colher na minha boca com uma raiva, resmungava que tinha de sair, tinha compromisso e estava ali, me alimentando, na boca, como se eu fosse um bebê. Sabe mãe, nesse dia, nessa hora, ela disse que nunca teve filho, nunca sentira o prazer de amamentar uma criança. Largou o prato no meu colo, começou a apertar os seios e com os olhos cravados em mim dizia:

- Vê, vê, pode ver (pausa) se-cos (marcou bem as sílabas). Não produzem leite, nunca produziram, nunca. Também (e balançava os ombros), também se produzissem, pra quem? (Me fustigava e gritava) Pra quem? Anda, responde, merda, pra quem?

- Nessa hora, juro que vi, mãe, juro, pela primeira vez, lágrima nos olhos daquela que não chorava nem quando levava uns tapas da senhora depois de uma bagunça ou travessura. Lembra, ela apanhava e ria. Mas o lampejo de humanidade durou só alguns segundos. Retomou o prato e forçou a colher mais uma vez na minha boca.

- Engole isso logo aí trem.

- Dia desses, sabe, a última colherada, fingi que engoli e depois cuspi tudo no canto da cama logo que ela saiu do quarto. Agora eu tô magra, tá vendo mãe. Sempre quis emagrecer. Agora tô até parecida com ela; embutida, se crescida, crescida pra dentro.

- Sabe mãe, sempre vivi em pesadelo, dentro de um redemoinho. Por isso, no dia em que a senhora me disse que ia morrer, eu soube que nunca mais sairia de dentro dele. Naquela hora, em silêncio, afastei-me o mais rápido possível do quarto, mas o corredor do hospital ficou tão comprido e largo que não conseguia deixar dele. Alívio, só quando longe, muito longe, vi o meu pai. Então entendi que, naquele dia, sua hora de acordar a senhora também perderia.

- E se você voltasse filha, se falasse com seus irmãos?

- Meus irmãos... Meus irmãos foram cuidar de si, mãe. E eles não estão errados não. Afinal, não é assim que tem de ser? Outro dia, o Lúcio foi lá em casa visitar a gente, levou os meninos também. Aquela casa com cheiro de gente doente. Os meninos acho que nem sentiram aquele cheiro. Luís, o mais novo, esqueceu a bola no meu quarto. Logo a bola, mãe. Era uma bola grande, colorida. Fiquei dias olhando pra ela. Como aquela bola era bonita. Olhava pra ela e me lembrava da outra bola, a de quando pequena. Por que minha irmã não a tirava de lá? (pensei)

- Criança pode ter raiva, mãe?

Silêncio.

- Sabe o que eu fiz com a bola? A bola que o Luís esqueceu lá em casa? No meu quarto? Furei, furei essa também.

- Filha, seus irmãos.

- Todos os dias eu olhava pra ela e me lembrava de todas as vezes em que eu e minha irmã discutimos, dos palavrões, das agressões quase físicas, quase, da minha fraqueza. Assim, me esforcei e consegui sair da cama. Procurei nas gavetas uma tesoura, um estilete ou coisa parecida. Assentada no chão, com a bola entre as pernas, mãe, fiz o primeiro furo. Tomada por uma força descomunal, desferi vários golpes sobre a bola, retalhei-a com raiva, com força. Acho que imaginei minha irmã no lugar dela. Lembrei-me dos olhares de rabo de olho, dos resmungos. Ah, mãe, e as vezes que era obrigada a ficar calada por que ela detestava ouvir minha voz. Exausta, suada, arfando, via os pedaços coloridos que se espalhavam pelo chão.

*

Não sei quanto tempo fiquei ali a despedaçar a bola. Sei que me senti fortalecida depois. Fui invadida por uma energia que me fez sair de vez da cama. Acho que minha irmã nem entendeu a minha mudança repentina. Alimentei-me melhor, comecei a caminhar, ainda desequilibrada pelo quarto. Mal sabia ela que me preparava para deixar aquele lugar. E hoje, na hora em que ela saiu para fazer compras, alcancei definitivamente a maçaneta. Minha saída... marquei com retalhos que guardei da bola. Deixei a porta da rua aberta.

*

Quando voltou das compras e encontrou a porta da rua escancarada e viu os retalhos coloridos pelo chão, procurou a irmã pela casa. Como não a encontrou, foi até o lugar preferido dela. Ao avistá-la no alto entendeu o que pretendia fazer. Engasgou o nome da irmã quando essa tomou impulso.

Nesse momento, exatamente, nesse momento, teve certeza da mãe ali. De repente, sentiu sua blusa molhada. Fios de leite escorriam de seus seios agora e, pela primeira vez, ela chorou de verdade.

Jussara Santos

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