- Anda logo menina, vem lavar esse cabelo.
Detestava lavar cabelo. Minha mãe ligava o rádio, punha-o quase no último volume pra ninguém ouvir meu choro estridente enquanto ela ensaboava e desembaraçava meus cabelos. Eu chorava e cantava a um só tempo. Depois de lavar tinha de ficar ao sol pra secar, passar tutano, untar e esperar o pente quente ou chapinha. Ah, pra finalizar, havia ainda a longa trança que minha mãe pacientemente fazia e havia também a agradável visita do vento. Não sei como ele sabia, mas sempre, nesse momento, na hora de trançar o cabelo, o vento bom aparecia e tentava levar embora fios que ficavam pelo chão. A gente, minha mãe e eu, tentava agarrar o vento que ria e escapulia...
Quando da primeira menstruação levei o maior susto. Só podia ser doença grave aquilo. Corri. Gritei minha mãe dizendo que morria. Eu lá sabia que mulher menstrua, eu lá sabia o que era menstruação. Minha mãe me disse que era o jeito de eu passar de menina pra moça. Ah (!) então era assim? De um dia pro outro, como em um gesto de mágica, dormi menina, acordei moça. Tudo na vida seria desse jeito? Daí pra querer casar foi um pulo. Minha mãe não falou que eu já era uma moça, então... Imaginei vestido branco, é, tinha de ser branco, véu, grinalda, tios e tias, festa. Tachos e mais tachos de doce, bala de puxa, carne assada, farinha de pilão. Mas meu pai sempre dizia:
- Filha, moça que não casa virgem a grinalda pega fogo logo que ela começa a entrar na capela.
- Pega fogo? Do nada?
- Não é do nada, filha. Todo gesto, todo ato carrega sua consequência, é só uma resposta à ação realizada.
Ele dizia isso com uma certeza tão grande, com tal firmeza, que, por vezes, eu chegava a acreditar. Até me via passando as mãos sobre a cabeça com medo de vê-la em chamas um dia.
Meu vizinho colocou fogo no corpo, sabe. Dizem que teve uma desilusão amorosa e decidiu largar o mundo. Ele vivia sozinho por isso pode organizar tudo. Quando alguém deu o alarme já não dava mais tempo. Ele já se esturricava no terreiro. Durante muito tempo sentimos o cheiro de carne queimada que impregnou toda a vila.
Eu não. Eu não tomaria uma atitude dessas nunca, não teria coragem de me incendiar. Me entregar antes do casamento, muito menos. Sou controlada, sou comedida, não aos incêndios, depois não quero ficar falada como as filhas de Dona Gertrudes. Não, eu não.
*
Eu era toda certeza até o dia em que o vi pela primeira vez. Agora que já não era mais uma menina, podia participar dos sambas de roda que antes meu pai dizia ser pra adulto. Meu primeiro samba de roda e lá estava ele tocando tambor. Não sei se foram os olhos e os ouvidos da paixão, mas o fato é que nunca ouvi um toque de tambor como aquele, o tambor parecia falar. Com os olhos cravados em mim, ele tocava cada vez com maior intensidade, podia ver os músculos de seus braços e até sentir sua musculatura. Meu corpo experimentou algo diferente, um calor entre minhas pernas, o coração parecia saltar pela boca, seria efeito da transformação de menina em moça? Sentia-me tão quente que desejei lavar os cabelos, fui tomar um refresco de aluá.
Meu pai aprovava o namoro, ele era trabalhador, honesto e além disso, seguia as tradições musicais da família. Nós sempre nos encontrávamos no galpão onde ele trabalhava nos tambores. Perguntei, certa vez, se os tambores podiam falar e ele disse que sim. Disse-me que eles se comunicavam, diferente do amor, jogo de pergunta e resposta.
À noite, nas rodas, ele tocava pra mim e eu dançava pra ele. Fazia questão de deixar minha saia levantar para que, enquanto me sacudisse, ele visse minhas pernas e o movimento de meus quadris. Meu pai não gostava, dizia que exagerava na hora de dançar, que todo mundo olhava...
- A grinalda, filha, lembre-se da grinalda.
Um dia, quando fomos nadar no rio, quase perdemos a cabeça e ultrapassamos os limites, mas eu sou controlada, sou comedida, não vou ficar falada como as filhas de dona Gertrudes - repetia essas palavras todo tempo silenciosamente dentro de minha cabeça, mesmo quando ele enfiou a mão dentro de minha calcinha.
Minhas tias estavam felizes porque eu havia me apaixonado e ia me casar. Minha madrinha morria de medo de eu ficar como tia Eulália, “tadinha (dizia minha madrinha) não conseguiu ninguém”. Minha madrinha já havia enviuvado três vezes. Na família, dizem que ela sufocava os maridos com os enormes peitos que tem sempre que se cansava deles. Eu não acredito nisso, embora os peitos dela sejam mesmo muito grandes.
Quanto mais eu e ele nos conhecíamos e ficávamos mais próximos, o calor aumentava, um calor de incêndio, sabe. Evitava ir ao galpão e ficar sozinha com ele, eu não queria decepcionar a família. Minhas tias e minha mãe preparavam meu vestido, véu e grinalda. Aquele ornamento com flores ficava cada dia mais lindo. Não, eu não podia deixá-lo pegar fogo. Às vezes, queria voltar a ser menina, queria deixar minha mãe ensaboar e desembaraçar meu cabelo enquanto o rádio, no último volume, tocava uma música qualquer. Mas menstruei, fiquei moça e...
*
Um dia, ou melhor uma noite, fui para a casa dos meus tios e os vi de um modo bem diferente. Não conseguia dormir, assentei-me na cama e fiquei lá sem saber o que fazer, quando ouvi uns risos estridentes vindos da cozinha. Abri lentamente a porta do quarto e, sem fazer barulho, desci os degraus. Escondi-me atrás da divisória de tecido transparente.
Minha tia com o pilão entre as pernas socava alho e cebola. Meu tio estava assentado atrás dela, envolvendo-a com as pernas dele.
- Homem, presta atenção, tô preparando tempero, não vê?
Ele desarrumava os cabelos dela, soltava os grampos e cheirava sua nuca e pescoço.
- Tô cheirando a alho, não sente?
- Vamos mulher, larga isso pra lá.
- Mas homem, a menina, ela pode acordar.
- Não acorda não. Anda. (empurra o pilão.)
Enquanto insistia, enfiava as mãos por baixo da blusa dela e apertava-lhe os seios.
- Duriiiiiiiinhos (ele dizia rindo)
Ela punha as mãos sobre as mãos dele e as conduzia em semicírculos. De repente, um barulho.
- Eu não falei, homem. Eu não falei.
- Calma, mulher, calma, foi só um gato.
- E se ela acordar?
- Ela não vai acordar.
- Vem.
Ele a pôs assentada em uma das extremidades da mesa.
- Posso passar azeite na sua bunda?
Eu ri baixinho quando ouvi aquilo.
- Tá doido homem?
- Doido, por quê? Ah, vai, deixa. É só um pouquinho.
- Mas (já sentindo a mão do homem apertando-lhe as nádegas) E se...
Ele usou a língua dele para silenciar minha tia e deu-lhe um longo beijo na boca. Depois levantou a saia colorida dela. Minha tia adora colorido, de bruços, e com uma parte do corpo apoiada sobre a mesa, deixou-se lambuzar de azeite por aquele homem. Antes, meu tio beijou várias vezes a bunda de minha tia.
Eu não conseguia desgrudar os olhos deles. Enquanto ele a lambuzava de azeite dizia que aquela era a bunda mais bonita que já havia visto na vida. Duas montanhas mineiras, dois montes negros e assim com aquele brilho...
Não sei se a pele dos dois brilhava ou era o efeito da luz da lua que invadia a cozinha.
- Vem. (disse minha tia.)
Ele há muito sem camisa e com a braguilha aberta atendeu ao chamado. Nem se deram conta do som oco que a fruteira fez quando despencou rumo ao chão. Uma laranja semidescascada rolou feito novelo de lã.
O pouco que dormi naquela noite sonhei. Acordei com a calcinha nos meus tornozelos e molhada também de suor.
*
Voltei pra casa pensando nele, pensei nele toda a manhã. Será que nossa primeira vez seria assim, será que ele me lambuzaria de azeite ou de outro tipo de óleo ou essência. Perguntei a minha mãe como era a primeira vez de uma mulher e de um homem. Ela desconversou e disse que na minha hora eu saberia.
Assim, sabendo da minha hora, fui ao galpão naquela tarde e ele estava lá afinando os tambores. Eu estava linda (ele disse). Não lhe dei muito tempo para perguntar coisa que fosse. Dei-lhe um beijo na boca enquanto puxava suas mãos para debaixo de minha saia. Ele ainda atordoado, eu também, fez amor comigo ali entre os instrumentos musicais.
Antes de anoitecer fui pra casa. Quase esqueci meu arco de conchas e búzios. Corri de felicidade em meio a um bando de pássaros que saíram em revoada. Daí pra frente, nos víamos todas as tardes ora no rio, ora no galpão. Éramos somente sorrisos até eu começar a enjoar, a me afastar da comida, até o cheiro dele me dar náuseas. Parei de menstruar, mas não voltei a ser menina.
*
Decidi então procurar Dona Lurdes. Ela morava isolada de todos, quase nunca participava dos encontros festivos. Poucos gostavam dela na vila, diziam que ela era adivinha, meio bruxa mesmo. Além disso, ela fazia umas garrafadas..., dizem, para moças aflitas do vilarejo. Minha mãe não gostava dela.
- Garrafada? De jeito nenhum. (ele disse) Por que a gente não vai embora?
- Fugir? Não isso não. E depois, pra onde?
- Eu não sei.
- Ele nos acharia no mais longe que houvesse. Vou procurar Dona Lurdes, já decidi.
- Vou com você.
- Não, quero ir sozinha.
E fui. Cheguei, olhei aqueles portãozinho e cerca de madeira velha e podre. Havia tanto mato em volta da casa que dava até medo. Bati palmas, ela não apareceu. Nervosa, bati palmas novamente e gritei:
- Dona Lurdes, Dona Lurdes. Será que alguém me viu chegar aqui? (pensei de repente)
Quando ela surgiu, não tinha nada de bruxa. Era uma mulher comum que enxugava as mãos em um avental estampado, já que lavava as roupas na bacia que deixa atrás da casa. Abriu o portão:
- Entra minha filha, entra.
A casa era pequena, não chegava a ser um cômodo, mas parecia. As paredes estavam repletas de figuras de santo, folhinhas velhas e fitas coloridas. Em um dos cantos um radinho de pilha e um lampião de querosene. Do lado de fora, ficava o fogão improvisado e os troços de carvão. Ela assentou-se na cama e eu no tamborete. Segurou minha mão:
- Quer chorar filha?
Nem esperei o fim da pergunta. Chorei, chorei muito. Enquanto chorava, Dona Lurdes disse que gravidez (como ela sabia?) não era pecado, doença ou crime. Disse que eu estava apaixonada do mesmo modo que muitas mulheres no mundo. Da mesma forma que minhas tias e minha mãe.
Diria que da mesma forma que ela, mas Dona Lurdes não se apaixonou dia nenhum.
Lá fazia de um tudo. Lavava, passava, cozinhava, “até o dia em que estivesse pronta” era o que dizia a dona da casa. Custou a entender esse “pronta” de que ela falava. Também custou a entender o que aqueles homens faziam lá todos as noites. Com o passar do tempo, entendeu. Quando a dona da casa falou que estava preparada, o coração saltou-lhe pela boca. Saiu, correu estrada afora. Mas aquele fim de mundo não dava em lugar algum. Depois de muito parada na estrada, voltou. A dona da casa estava lá a esperar.
As colegas a arrumaram. Depois do banho, pentearam seu cabelo. Fizeram-lhe um coque, lambuzaram seu corpo com um creme de cheiro enjoativo. Limparam-lhe as unhas, usaram pedra pomes para amaciar a pele de seus pés.
A dona da casa disse a ela que naquela primeira noite não teria muitos clientes porque era a primeira, mas era só naquela. (“ter, eu não teria nenhum”)
Não se lembra de quantos homens a tiveram, mas lembra-se de que doeu, embora as colegas tenham jurado que não doeria. “Dói até hoje. A alma dói”. (ela disse)
O primeiro não tinha nada de especial. Suado, a bebida saía-lhe pelos poros. Lavou o rosto, os braços. Usou a água da pequena bacia de alumínio posta, a um dos cantos do quarto, por uma das colegas.
“Antes de partir pra cima de mim, cheirou os sovacos, sabe.” Ela disse que, enquanto ele falava “abre as pernas menina” e se satisfazia, ela olhava para uma folhinha com uma imagem de santo, que estava pregada na parede.
Mais tarde, depois que as luzes foram apagadas e todas dormiram, fugiu.
“Tive a impressão de que, no momento em que corria, me tornava menina de novo, aquela que foi deixada lá naquela casa, com aquela mulher. Corria, chorava. Meus pés pisavam em cacos de vidros. Vez em quando eles sangram, assim, do nada. Todos os homens que tive depois, não tive por amor ou paixão. Tive por raiva.”
- Por que a senhora não esquece. (perguntei)
- Esquecer? Certas lembranças não são pra ser esquecidas.
Saiu e voltou com a garrafada.
- Pense no que vai fazer.
Peguei a garrafa e saí.
- Moça. (ela gritou) Cuidado com o incêndio.
- Que incêndio?
Ela entrou lentamente em casa.
No caminho, parei e joguei fora a garrafada.
*
Em casa, fui recebida pelas mulheres da família. A mãe, as tias, as primas. Se as avós fossem vivas também estariam lá. Era uma festa onde homem não entrava, disse minha madrinha. Fizemos todos os tipos de brincadeiras e adivinhações. Não bebi, nem comi, fingi.
Respirei aliviada quando toda aquela gente foi embora. A mesa estava lotada de presentes e minha mãe disse-me que havia mais um. Foi até o quarto e, quando voltou, trazia nas mãos a grinalda. Era a coroa de flores, conchas e búzios, mais bonita que já havia visto.
- Toma, é sua. É a sua grinalda Rosemeire.
Não sei quanto tempo olhei aquela grinalda nas mãos de minha mãe. Tentei segurá-la mas não consegui. O choro que guardei durante toda a festa veio à tona, brotou todo de uma só vez. Assustada, minha mãe pôs a coroa de flores sobre a mesa, assentou-se ao meu lado e perguntou se eu estava preocupada com o casamento. Disse-me que eu podia perguntar o que eu quisesse, ela responderia. Com raiva falei:
- Agora né mãe. Agora que eu tô aqui desesperada a senhora responde o que eu quiser. Por que a senhora desconversou quando eu quis saber, por quê?
- Filha o que que tá acontecendo?
- Tô grávida, mãe, grá-vi-da. Grávida e desesperada.
- Grávida ( repetiu a palavra várias vezes) Mas você sempre foi controlada, comedida. Por que não esperou filha? Vai ficar falada como as filhas da Dona Gertrudes, e agora?
- A senhora está pensando nas filhas da vizinha? Eu me apaixonei, mãe. Foi isso, me apaixonei. A senhora também não se apaixonou? Ou não?
Minha mãe olhou pra mim com raiva, com o rosto quente.
- Fala mãe. Eu me apaixonei e me entreguei. Me entreguei com toda força e a senhora? A senhora se entregou, mãe?
Com raiva, ela partiu pra cima de mim e nós duas nos estapeamos várias vezes. Quando meu pai chegou reinava um silêncio pesado na casa. Os presentes ainda estavam sobre a mesa, inclusive a grinalda.
*
No dia seguinte, minha mãe decidiu que não contaríamos nada para meu pai. Até o dia do casamento a barriga não cresceria tanto. Muita gente fazia isso, nós também podíamos fazer. Depois de casados as coisas ficariam mais fáceis, segundo minha mãe. Concordei, mas meu pai estranhou meu jeito triste e quieto em casa e nas rodas de samba. Às vezes, nem dançava. Os tambores também pareciam mais tristes. Uma noite, próxima ao casamento, parecia até que um dos tambores chorava, reproduzia um lamento.
Eu queria contar, sabe. Sentia-me mal enganando meu pai, mas não contei, então...
*
A vila estava linda, toda enfeitada. Os tambores, cada um trazia um ornamento diferente. A capela era toda flor. Nervosa, fui arrumada pelas mulheres da família. Banho com ervas, colônia de flor de laranja, massagem nos pés. Respirei fundo na hora de colocar o vestido. Quando minha mãe ornou-me a cabeça com a grinalda, senti um leve arrepio, acho que mais pela força do vento que soprava lá fora. Nada daria errado naquele dia.
Mais cedo, antes de minhas tias chegarem, pedi a minha mãe que repetisse os gestos de quando eu menina. Pedi que ensaboasse e lavasse meus cabelos. Depois desembaraçasse, passasse tutano e usasse o pente quente ou chapinha. Ah, e a trança. Ela fez o que eu pedi, rimos muito e ainda brincamos com o vento que reapareceu e jogou de um lado para outro os fios de cabelo largados pelo chão.
Pronta, segurei a mão estendida por meu pai e seguimos para a capela. Tudo daria certo naquele dia. As portas da igreja se abriram, enquanto na beira do rio um grupo de pássaros saía em revoada. O altar parecia longe. O noivo também. Apertei a mão de meu pai e comecei a caminhar pelo interior da capela. Foi exatamente nesse momento, tal qual ele disse, que senti uma chama sobre minha cabeça. Soltei a mão dele. Em desespero, tentei retirar a grinalda em chamas, não consegui. O fogo aumentava e queimava meu vestido. Ouvia meu pai longe, muito longe, gritando meu nome. Vi meu vizinho se esturricar no terreiro. Dona Lurdes era uma imagem sacra no altar. Saí um verdadeiro incêndio da capela. Lá fora, pude ouvir direito meu pai. Acordei com ele assentado ao meu lado, na cama, balançando-me de um lado para o outro.
- Filha? Acorda filha. Foi só um pesadelo.
- Não pai, não. Tô grávida. Tô grávida. (ofegante e aflita)
*
Bem que achou o dia diferente, o pássaro agourento piava feito um louco. A mãe dele dizia que sempre que aquele pássaro cantava era mau presságio, sinal de coisa ruim. Mas ele não fez alarde como eu imaginei, sabe. Pegou a espingarda, deu um chega pra lá na minha mãe e, em silêncio, tomou o rumo do galpão. Minha mãe parada na porta. Um bando de pássaros em revoada. Um estampido. O grito estridente do agourento. Uma grinalda sobre a cama.
JUSSARA SANTOS
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