Minha lista de blogs

quinta-feira, 14 de julho de 2011

QUASE FIM


- Lembra da mortalha filho?

- Ah, é mesmo. Teve a mortalha.

Aquela havia sido a surpresa da manhã. A mulher chegou lá em casa e encomendou uma mortalha. Minha mãe costurava e já havia confeccionado todos os tipos de roupa, mas uma encomenda dessas?

Assentado no chão, não entendia o descontentamento de minha mãe com aquela encomenda, por isso, assim que a mulher foi embora, perguntei o que significava mortalha. Ela me explicou que se dá esse nome ao tecido que envolve o cadáver que vai ser sepultado.

- Aquela mulher vai morrer?

- Todo mundo vai morrer, menino.

- Não, quero saber se ela sabe o dia, a hora... Já que está encomendando a mortalha.

- Eu não ia perguntar isso, filho.

- A senhora vai fazer?

- Vou. Ela vai pagar, precisamos de dinheiro.

Fiz a tal da mortalha, mas só Deus sabe como. Todos os dias olhava para aquele tecido, lembra, era um cetim azul, não, era branco, não, era azul e brilhava. Não conseguia cortar o pano, imaginava a mulher envolta na mortalha, cheguei a sonhar com ela deitada no caixão rindo pra mim e toda azul acetinado; meu Deus, para com isso mãe. Acho que é porque enquanto tirava as medidas dela ( comprimento, quadril, cintura, altura) me senti um vendedor de funerária. Mas a senhora fez a mortalha, é, fiz. E ficou bonita a danada da mortalha. Pus uns detalhes, uns enfeites que a mulher nem havia pedido. É, eu me lembro, ficou bonita mesmo. Só que ela nunca apareceu pra buscar. A gente nem se perguntou o porquê, né mãe. É, não. Medo da resposta acho. Que fim a senhora deu na mortalha? Traça comeu? Ah, deixa essa conversa pra lá filho.

Sua irmã vem hoje? Sei não. Nem quero saber. Deixa disso filho. Família é família. Fala isso pra ela.

Ele sempre reclamou que ela não ligava pra nada que ele fazia. Ele quem mãe? Reclamava que ela não ligou pra escada toda de pedra que mandou construir no quintal, reclamava que ela não reparava no gramado e no jardim que ele mandava cuidar todo mês, nem na pintura nova da casa. Hum, e os livros, ele tinha paixão por livros. Quem, o papai? De vez em vez tinha de limpar toda a estante, envernizar, deixava os livros em repouso, ele dizia; depois voltava com todos limpos para o lugar, parecia um ritual sacro. A senhora está falando de quem?

Sua irmã vem hoje, filho? Sei não mãe, já falei.

Eu nunca gostei muito de ler confesso. Às vezes, ele ficava lá parado, primeiro olhava a estante e os livros, depois saía e observava o jardim, depois seu olhar se perdia, sabe. Eu acho que, nessas horas, ele estava sempre pensando nela, talvez ela gostasse de livros e de estantes, né filho? Ela quem mãe? Talvez ela desse atenção para jardim e flores e pedras e degraus, aquele olhar perdido, longe, só voltava quando sua cintura era envolvida pelos braços da realidade, infelizmente se contentava com ela.

- Lembra do vizinho, filho?

- Qual mãe?

- O que foi enterrado vivo.

- Não se sabe se ele foi enterrado vivo, né mãe.

- Na época, a polícia falou que achava que sim.

- Achava.

Um dos muitos de meus vizinhos triste com o casamento enamorou-se de uma outra mulher, dizem. Dizem que ela era casada. Um dia ele sumiu. Como era trabalhador, levantava muito cedo, madrugava mesmo e batia pontualmente o cartão, todos estranharam o seu sumiço. Hospital, nada. Amigos, parentes, colegas de trabalho, nada. Medicina legal, nada. Polícia. Esta, depois de seguir pistas como bilhetes que foram trocados com a mulher, marido da mulher etc. descobriu um corpo, uma cova que foi aberta meticulosamente muito tempo antes do sumiço dele e ele em pé, lá dentro, com as mãos postas em cruz sobre o peito. Porém, para todos os efeitos, para os mais velhos da família e para as crianças, ele foi atropelado em movimentada avenida da cidade.

Sua irmã casou, filho? Casou mãe, casou?

Nem deixou a gente fazer festa, né. É. Nem deixou a gente ficar feliz. Eu queria ter feito um chá de panela; isso não se usa mais, mãe. Bobagem, eu queria ter passado pra ela a cristaleira, o jogo de chá, e as taças filho, a gente ainda tem as taças? Como que foi mesmo filho? O que mãe? O casamento. Ela saiu num carnaval, não lembra? Saiu, é saiu. A gente podia ter feito um almoço ou jantar comemorativo. Mas ela sempre foi assim, a senhora sabe, nunca compartilhou decisões, as amorosas então. Mas eu fiquei feliz com o casamento, você não? (pausa) Eu nem tive tempo pra saber, mãe, não fui convidado, fui comunicado. Mas hoje ela vem? Não sei mãe, não sei. Se hoje ela vier, eu vou dizer pra ela que fiquei feliz.

Como a senhora quer o cabelo hoje? Pode trançar do jeito que você quiser, mas faz uma trança bem bonita, só não aperta muito, às vezes você aperta muito. Tá bom mãe.

E as cinzas, filho? Que cinzas, a da Semana santa, passa na minha testa, se tiver. E mãe, para de falar de cinza, de Semana santa. E de Páscoa, filho, posso falar de Páscoa, Páscoa é ressurreição. Época bonita pra morrer, né filho? Morre e renasce, tudo ao mesmo tempo. Chega, se continuar paro de fazer a trança. Tá bom.

A sogra não gostava dela não filho. Que sogra mãe? Acho que a senhora tá com febre hoje, mais tarde vou chamar o médico aqui. A sogra não gostava dela. Ela soube isso muito mais tarde, quando já dividia a mesma casa com ela. Dizem que ela preferia uma outra namorada, quase noiva, que ele teve. Ela morreu cedo, dizem que por causa de uma tentativa de aborto mal sucedida. Nunca perdoou o filho por isso. Ela também tinha suas esquisitices. Ela quem? (impaciente) A sogra. Saía escondida do marido e dizia para os filhos “se contar ferro quente na boca”. Onde já se viu uma coisa dessas? Que mãe faria isso com filho? O mundo tá cheio de gente esquisita mãe, o noticiário traz sempre. Não lê essas coisas pra mim não, viu filho.

E sua irmã que não chega. A senhora tá agitada e ansiosa, isso não é bom, mãe.

Quero ver sua irmã filho. Quero ver vocês dois juntos novamente. Faz tempo que não vejo isso. O que a senhora quer para o almoço, nada, tem de se alimentar mãe. Eu vou com esse vestido mesmo? Vai aonde mãe? Fica calma, a senhora já tá trocada, perfumada. Depois vou chamar o doutor aqui. Deixa eu te dar um beijo filho, olha, vê se casa também. Arranja alguém pra dividir vida com você, fica sozinho não. Mãe.

- Lembra da grinalda filho?

- Lembro

Só na nossa rua e no nosso bairro mesmo pra alguém ver grinalda voando. Deu um vento naquele dia lembra. Nossa, ventou demais. E a Eulália, mãe, correndo atrás da grinalda, tentando pegar. Eu ri muito, eu não conseguia parar de rir. Eu achei que ela fosse ser levada pelo vento. Isso é que era vontade de casar. Mas ela não pegou a grinalda nem casou. E o agourento que piou na hora daquele vento todo. Nossa, chega a me dar arrepios. Imagino mãe o que teria acontecido com a dona daquela grinalda. É, eu também.

Lê um poema pra mim, filho. Agora? É agora. Mas não sei assim de improviso, tem de ensaiar mãe. Você ensaia muito filho, por isso não vive. Lê filho. Que poeta a senhora quer hoje, Cecília, Drummond, quem? Você filho. Lê um dos seus. Eu não sou poeta mãe. É, sua irmã sempre disse que você é um poeta e dos bons. Minha irmã disse isso? Ela nem lê o que eu escrevo. Ela sempre leu escondido. Ela mexia nas minhas coisas? Ela lia os seus poemas, é diferente filho. Lia pra mim com uma voz suave, tranquila. Lê filho, escolhe um e lê. Não, vou ler o de outra pessoa, tá bom, filho, tá bom.

Oh, eu não quero ir com esse vestido, já falei. Ir pra onde?

Lembra do incêndio? Não. Que incêndio? O que destruiu a alfaiataria. Não lembra, ele emagreceu tanto na época. Todos os panos perdidos. E os ternos já quase prontos. Tudo queimado. Ficamos sem nenhum dinheiro, não fossem os amigos, sei não. Ah memória, maldita memória. Não queria me lembrar de certas coisas, não sei porque não a perco, tanta gente perde né filho, ele mesmo. Todo dia mostrava as fotos pra ele, do nosso casamento, do seu batizado, do casamento da sua irmã. Não há fotos do casamento da minha irmã, mãe. Ah, é. Mas eu não desisti, mostrei as fotos até o dia em que ele não reconheceu mais ninguém.

O que você faria se eu deixasse de reconhecer você, filho?

(silêncio)

Lembra do bolo de laranja, você adorava aquele bolo. Faz pra sua irmã filho, ela já deve tá chegando. Eu não sei cozinhar. Pega o papel e anota a receita, eu não vou fazer bolo pra minha irmã, ih... Pega farinha de trigo, quantas xícaras mesmo filho... duas, é são duas, a mesma quantidade de açúcar, caldo de laranja, ah, filho, os ovos não se esqueça, são seis, eu acho, não me lembro, e o fermento. Bate o açúcar com as gemas, mistura o caldo de laranja e bate, depois é só juntar a farinha peneirada, as claras em neve, o fermento, colocar em forma untada e assar. Sua irmã adora chá de erva doce, faz chá de erva doce ou então alecrim.

Outro dia sonhei que meu seios estavam cheios de leite filho, vê... Será que sua irmã tá grávida...

Lembra da Sofia, não saía de nossa casa, era tão curvada que quase beijava o chão. Será que aquilo era peso das coisas que fez na vida, nossa, quanto peso ela carregava.

Olha filho, eu hoje não tô boa não, assim que sua irmã chegar entrega a carta dela pra ela. Que carta? Escrevi, há algum tempo, uma carta pra você e outra pra sua irmã. Não fica zangado comigo se descobrir coisas a meu respeito que nunca imaginou. A senhora tá falando de um jeito.

Ouvi o agourento hoje e ainda sonhei novamente com as tripas, não viu que acordei gritando.

Nunca sei dizer quanto tempo caminho segurando aquelas tripas nas minhas mãos. Elas estão sujas de areia e meu suor se mistura à areia e às tripas. Minha roupa é um misto de sangue e barro. De repente alguém grita meu nome e sem olhar para trás corro, corro muito e já que a rua não tem calçamento escorrego barranco a baixo. Enquanto desço o barranco, esfolo braços, costas, pernas e as tripas continuam lá, seguras pelas minhas mãos. Quando enfim paro de escorregar, lá no final do barranco, ele está olhando pra mim e, com o corpo oco, sorri. Estende as mãos pedindo as tripas... Eu tento acordar, juro que tento, mas meus olhos não abrem, sinto que busco alcançar o relógio talvez, mas algo me puxa e eu grito.

É sempre o grito que ecoa pela casa que me faz acordar toda molhada de suor. Não sei se ele tem medo de dormir, mas eu tenho, sabe, porque já faz algum tempo que, depois de algumas horas de sono, vejo-me a correr segurando aquelas tripas.

Esquece mãe, vai ficar tudo bem. Quero te pedir duas coisas filho, primeiro diga coisas boas a sua irmã, entregue a ela a carta dela, está na primeira gaveta da cômoda, junto a sua. Depois, sabe o baú que fica na sala, sei, há muitos guardados lá. Mas há um guardado especial. Qual mãe? A mortalha filho, a mortalha. Ah não mãe isso não. Calma filho, vai ficar tudo bem. Passa arnica nos meus pés, não quero ir com os pés doendo, não sei se a caminhada vai ser longa. Não quero ir com esse vestido também não. Quando a mulher não veio buscar a encomenda, pensei: e se ela não existisse, e se ela veio, na verdade, trazer a mortalha pra mim, guardei e esperei a hora de usar. Se não servir, manda ela assim mesmo comigo. Minha irmã é sempre poupada não é mesmo. (ele pensa) Filho, e a arnica, vai buscar, vai...

Quando entrou no quarto com a infusão de arnica, ela parecia dormir tamanha era sua serenidade. Passou arnica nos pés da mãe. Vestiu-lhe a mortalha, era mesmo de um azul acetinado.

Lembrou-se, maldita memória, de que depois da confecção da mortalha a mãe costurou cada vez menos, deixou de pegar encomendas, nem os tapetes de fuxico que fazia com as sobras de pano ela animava confeccionar. Um dia recolheu os tecidos e retalhos coloridos e doou a uma vizinha. Muito depois, soube que ela havia dito, quando da entrega dos panos à vizinha, que não costuraria mais.

Com raiva, ele abre a primeira gaveta da cômoda e pega as cartas. Embaixo de algumas roupas da mãe havia uma foto envolvida em papel de seda, amarelada, não dava para ver muito bem o rosto da pessoa, atrás apenas uma dedicatória: com amor Egídio. Na sala, põe as duas cartas sobre a mesa, iam ficar ali até decidir o que fazer com elas. Lentamente pega o vaso com flores e lança-o com toda a força na cristaleira. Lá fora alguém bate palmas, na sala, cacos e mais cacos rolam pelo chão.

Jussara Santos

Nenhum comentário:

Postar um comentário