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sábado, 30 de novembro de 2013

Apenas um conto

Chegou a dizer que não gostava mais dela.
Disse, certa vez, que estava ali até hoje apenas por protocolos sociais.
Ele, lendo seu jornal, e ela querendo falar de amor, ela querendo rir.
Rir de quê, se ele não gostava mais dela.
Mas, hoje, naquele quarto escuro,assentado ao seu lado, não conseguia largar sua mão.
No quarto escuro, quis sentir seu perfume adocicado. E não é que  depois de muito sentiu. Pode acreditar, é verdade.
Durante dias tentou resgatar o instante em que a viu pela primeira vez.
 Ela, parada na rua, esperando o sinal verde e, de repente, o sol sobre ela. Os dois uma única claridade. Atravessou a rua também.
Depois vieram as famílias, os amigos e o para sempre.
Não tiveram filhos, deviam?
Tentou resgatar o calor da mão dela.
Todas as vezes que a banhou, ela já doente, lembrou-se dos banhos que tomaram juntos. Lembrou-se de beijar-lhe da nuca ao cóccix, e ambos arrepiados, ambos satisfeitos.
Agora, tenta entender porque abriu mão, aos poucos, desses momentos.
Pôs-se velho, quis o pôr do sol da velhice, foi quando olhou as rugas dela e viu que eram as suas rugas. Cada ruga, um significado.
Quis resgatar uma a uma.
Quando ela, lentamente, largou a mão dele, ele foi até a janela, abriu as cortinas.
Coincidência ou não, o sol estava lá.
O sol  invadiu o quarto e pairou novamente sobre ela. E era a mesma luz do primeiro dia e eles uma única claridade.
E talvez já não fosse tão mais velho, talvez não tivesse mais rugas, talvez dissesse que gostava dela, dissesse que não estava ali por protocolos sociais, dissesse do quanto era bonita, dissesse da saudade, dissesse: - ainda dá tempo?

Jussara Santos




sábado, 19 de outubro de 2013





Mar não era
Mas era sal
Salmoura do amor
Que não mora mais
Do amor que não mais saliva
Do amor que não nos salva da dor
Dó de mim
Ai de ti
Dor de  D’ali

Jussara Santos



sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Conto



Eudora, assim se chamava a cidade cuja personagem dizia que a definir “seria como dançar sem música”. Não vivo em Eudora, talvez nem gostaria. A cidade onde vivo não é pacata feito aquela. Vivo em uma cidade grande, barulhenta, encalorada. Nela predomina um estado de sudorese, um suor excessivo que define o odor de seus habitantes. Feito o odor dela. 
Ela era percebida pelo cheiro. Todos os dias era assim. Chegava do trabalho e  vinha ela com pressa, na tentativa de me impedir de fechar o portão. Quase, quase esmagava a mão dela tentando ser mais rápida, e era.
Ela me pedia comida. A conversa era a mesma todos os dias.
- Tô com fome, dona.
Dona, odiava que me chamasse de dona. Dona é a vó... eu tinha vontade de dizer. Mas ela era pobre. Mas ela vivia na rua. Mas ela não tinha nada...
- Ninguém me dá comida. Dona, tô pedindo des lá debaixo. Ninguém abre a porta pra mim. Me dá um prato de comida, dona.
Acho que ela sabia que odiava o tal do dona, já que repetia tantas vezes, feito um disco arranhado,  a palavra maldita.

Mas, hoje, vindo pra casa, depois de aturar o insuportável do meu chefe, os insuportáveis dos meus colegas. Depois de sentir calor o dia inteiro. Depois de ver seu Apolônio, o porteiro, com sua camisa empapada de suor. Depois de sentir meus pés inchando, minhas pernas inchando. Depois de entrar nesse ônibus lotado. Depois de não achar lugar para assentar. Depois de pisarem no meu pé. Depois de um ou uma sem educação desafogar seu gás bem aqui em meio a essa multidão. Depois... Pensei... se ela estiver lá, e estaria, com seu mau cheiro, com suas unhas esmaltadas na sujeira e sua fala mansa pedindo comida, sei não, sei não...

- Deus nos testa todos os dias, de diferentes formas. (Dizia minha vizinha beata.)
- Não devemos negar água nem comida a ninguém. (Devia dizer outro vizinho.)

O calor não nos deixa racionar. Descer de um ônibus lotado é que é como dançar sem música. Quem tem obrigação de dar comida pros outros? Me conta, quem? Por que não procura emprego? Por que não faz um bico? Meu vizinho diz que esse povo não gosta mesmo de trabalhar. Povo, que povo? 

Eu ando cansada, cheia, cheia de aturar. Subo a rua e sinto a presença dela. Um cheiro nada adocicado. Dela ou meu? Ai que vontade de tomar banho, de tirar o odor de tanta gente da minha pele, feito político depois que abraça eleitor. Minha rua parece uma esteira rolante. Cada passo que dou, pareço que dois eu volto. A casa cada vez mais distante. Minhas pernas pesadas não me deixam andar com a pressa que gostaria. Ai, alguém trucida meu chefe, por favor. Outro dia, em pleno sonho, tentei cuspir nos meus colegas, mas acho que não consegui. Meus pés. E se hoje ela for mais rápida do que eu. E se entrar na minha casa, remexer as minhas coisas. Descobrir meus guardados, meus segredos.

- Abrir a porta, é abrir o coração. (Teria filosofado alguém...)

Pensei que eu também devia ser percebida pelo cheiro, pois assim que me aproximei de casa, ela ergueu a cabeça e preparou-se para disputar comigo a chegada ao portão. Meu corpo pesado, minhas pernas, meus pés, tive de fazer um esforço grande, as chaves quase escorregam das minhas mãos suadas. E se um dia eu é que precisasse pedir? Abri o portão com pressa e com raiva e esperei que chegasse perto, mais perto, pertíssimo e esmaguei, é, desta vez, esmaguei a mão dela no portão.

Jussara Santos – Janeiro 2013