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sexta-feira, 29 de julho de 2011

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Pequenas doses de arnica


Chegou guiada pela dor. Uma dor aparentemente física, mas, na verdade, era a alma o que lhe doía.

- Para uma alma fraturada, pequenas doses de arnica, ele dizia.

Foi assim que eles se conheceram, entre muitos tipos de dinamizações.

Ela não sabe dizer se chovia ou fazia sol, sabe apenas que imaginou reconhecê-lo através de um despretensioso esbarrão em uma rua qualquer da cidade. Mas não, uma pequena fratura, uma dobradura da alma e ele estava ali, diante dela, ao alcance de suas mãos.

Ele não; ele soube dela assim que a viu naquele dia. Soube de todos os seus significados; o pescoço à mostra, o desenho da cintura e o discreto jeito de, ao mesmo tempo em que lia, acompanhá-lo com um olhar de quem interpretava cada linha dele.

E era sempre assim. Às vezes, ela em pé, parada na porta, e uma das mãos dele, como se distraída, resvalava as coxas dela. Outras vezes, um carinho que ele fazia em uma das mãos dela levava-a a esquecer, por alguns segundos, possíveis tragicidades escritas ali. Ela sentia medo dos caminhos que aquelas linhas indicavam, por isso escondia ao máximo o grande número de riscos que suas mãos traziam.

Ela nunca lhe contou, mas, certo dia, seus pulsos arderam, desejando um leve corte de veia e a viva temperatura do sangue, porém, meio sonhando, meio acordada, teve a impressão de que ele acariciava-lhe os pulsos que ainda ardiam, mas agora de outra querência.

Ele, por sua vez, silenciosamente, desejou falar de seu querer por ela. Nesse dia sim chovia forte e nenhum dos dois mencionava sequer palavra. Música só a dos grossos pingos d’água caindo sobre as telhas. Ele deixava que seus joelhos esbarrassem nos joelhos dela, na busca de falar de sua proximidade. Suas mãos, quis pousadas sobre as coxas dela, desta vez propositalmente, conscientes do que faziam, queriam e diziam. Dono de seu desejo as levaria até os fartos quadris da mulher e as repousaria ali na junção entre as coxas e o ventre.

-Ah se pudesse perguntar qual perfume ela usa que deixa esse cheiro assim forte e doce ao mesmo tempo, ele pensou.

Mas a tal da ousadia só nos visita em sonho, nesse estado meio de transe, quando não temos mesmo consciência de quem somos. Não perguntou, restou-lhe imaginar-se tocado por aquele aroma que vinha dela ou da terra molhada pela chuva, já não sabia. Ela possuía a cor da terra, cor de barro molhado. Seus seios que pareciam moldados por uma artesã estavam ali ao alcance de suas mãos. Ele ainda tentava disfarçar o suor que lhe escorria pela testa, mas não tinha mais jeito. Ela deitada, ele sobre ela, os pingos da chuva sobre as telhas...

Jussara Santos

RUÍDOS


Ah, essa coisa de acordar todos os dias, espreguiçar, investigar o quarto canto por canto, para ter a certeza de que de fato acordou e de que está de fato ali, sempre ali, no mesmo lugar; assentar-se na cama, refletir se põe os pés no chão, se calça os chinelos; ah, esse corpo sem excessos de gordura ergue-se pesado, caminha até a janela, abre as cortinas e lá está o sol, esse maldito sol, sempre esse sol; depois, chega até a porta do quarto, encosta o ouvido nela tentando identificar os primeiros barulhos da manhã, nada de rádio ou tevê, no banheiro apenas o som da descarga, a água da pia; na cozinha, o apito, o leite, a chaleira, a água quente do café talvez tenha caído dentro da garrafa térmica e essa água em fervura faz coro com o ambiente que parece em eterno estado de ebulição; outro alguém levanta e com ele a torturante ausência de bom dia ou coisa que valha; o filtro, a água do filtro e aquele beber dele cada dia mais lento, cada dia mais devagar; ah, mas, e se de olhos fechados, o som daqueles intermináveis goles d’água lembrarem a você uma fonte, um barulho de rio te afastando da chaleira, do café que, distraído, ultrapassa os limites da garrafa e molha a mesa, caindo gota a gota no chão, provocando o enérgico bater da porta do armário, a raivosa toalha de papel; a faca bate no prato quando uma maçã é partida ao meio e o atrito dela em certos dentes parece querer dizer do quanto eles são saudáveis; não se diz palavra naquele lugar, mas rangem-se dentes, tritura-se toda a ordem de frutos e cereais, corpos passam rentes, quase se esbarram, quase... já o sol, esse não faz cerimônia, entra e sai por todos os poros que encontra e em segundos cada qual segue caminho, chaves na porta cerram o silêncio.

Jussara Santos

sábado, 16 de julho de 2011

RETALHOS COLORIDOS


No dia em que minha irmã ganhou a bola colorida, não sei se seus olhos brilharam, muito menos se ela foi tomada pela felicidade. Sei apenas que, ao ver a madrinha dela entrar lá em casa com aquele presente multicor, fiquei extasiada. Nunca havia visto nada igual ou parecido. Minha irmã, por sua vez, olhou-me com aquele ar de superioridade, olhar que me lançava desde o dia em que surgi no mundo, acho. Olhar de quando me chamava de mau elemento. Fiz jus ao apelido e furei a bola naquele dia mesmo.

O furo foi tão milimétrico que a senhora custou a perceber o lento esvaziamento da bola. A bola esvaziava e o relacionamento entre mim e minha irmã, se é que existia algum, se esvaziava também. Pouco a pouco, a bola perdia seu colorido, ficava assim meio sem graça, sem vida. Para escapar da fúria da senhora, lembra, fui brincar com a filha da vizinha. Fiquei lá até o olhar da senhora encontrar-se com o meu e...

- Criança pode ter inveja, mãe?

Silêncio.

- Filha?

- Sempre quis saber o porquê de ela não gostar de mim, o porquê de me tratar mal, de me tratar com aquele ódio no olhar, com o corpo fumegando como se vivesse no calor do inferno.

- Eu confesso que não sei filha (ela disse). Todos foram criados da mesma maneira, ninguém nunca teve luxo ou regalia. Eu não sei.

- Talvez meu pai soubesse (disse). Mas eu devia ter perguntado antes de ele também ir-se embora.

Meu pai dizia que um dia ia embora dormindo. Eu, pequena, ficava intrigada com aquilo. Como alguém poderia ir embora dormindo? E pra onde? Mais tarde, aprendi que havia um transtorno, doença, sei lá, que fazia com que as pessoas caminhassem enquanto dormiam. Algumas até realizavam tarefas em total estado de sono e nem se davam conta disso. Porém, meu pai não sofria desse mal. Nunca o vi caminhar pela casa ou realizar atividade que fosse em estado de dormência. Assim, perguntei-lhe, certa vez, que história era essa de ir embora dormindo.

- Ora, minha filha, é simples; fecho os olhos, durmo e naturalmente perco a hora de acordar.

E foi assim. Um dia ele dormiu e perdeu de fato aquela hora.

Eu também já quis perder essa tal hora de acordar. Principalmente quando pressentia minha irmã se aproximando da porta do meu quarto. Seu corpo era tão rígido que eu podia ouvi-lo à distância, em marcha pelos corredores da casa. Mas eu sempre acordo, sempre...

Só que ontem não. Ontem, eu jurei que se não perdesse a tal hora de acordar, reuniria todas as forças e voltaria pra casa.

- E assim você acha que volta?

- Acho não, tenho certeza. A senhora está aqui não está? Isso não é esquisitice da minha cabeça.

- Mas...

- Não, mãe, nem tente me convencer do contrário. Não há mais tempo. Além do mais, cansei e me arrastar até aqui não foi tarefa das mais fáceis.

- Eu não posso fazer nada?

Olhei para minha mãe e, por um instante, vi minha infância através dos olhos dela. Diante do meu silêncio, ela perguntou novamente:

- Eu não posso fazer nada?

Enquanto perguntava, ora passava as mãos nos meus cabelos ora secava minhas lágrimas com as costas de uma das mãos.

- Sabe mãe, fraquejei e aquilo que mais temia aconteceu. Sempre tive medo, pavor mesmo, a senhora sabe, de depender do ódio de minha irmã. Depender de sua ajuda na realização das tarefas e atividades mais básicas. Infelizmente, enfraqueci, minhas forças minaram e hoje nem uma colher de sopa, um copo d’água consigo levar à boca.

Outro dia, sabe, ela entrou no meu quarto com o prato de comida. Ela sempre trazia a comida muito tempo depois de tê-la terminado. Deixava a comida gelar pra trazer. Chegou a colher na minha boca com uma raiva, resmungava que tinha de sair, tinha compromisso e estava ali, me alimentando, na boca, como se eu fosse um bebê. Sabe mãe, nesse dia, nessa hora, ela disse que nunca teve filho, nunca sentira o prazer de amamentar uma criança. Largou o prato no meu colo, começou a apertar os seios e com os olhos cravados em mim dizia:

- Vê, vê, pode ver (pausa) se-cos (marcou bem as sílabas). Não produzem leite, nunca produziram, nunca. Também (e balançava os ombros), também se produzissem, pra quem? (Me fustigava e gritava) Pra quem? Anda, responde, merda, pra quem?

- Nessa hora, juro que vi, mãe, juro, pela primeira vez, lágrima nos olhos daquela que não chorava nem quando levava uns tapas da senhora depois de uma bagunça ou travessura. Lembra, ela apanhava e ria. Mas o lampejo de humanidade durou só alguns segundos. Retomou o prato e forçou a colher mais uma vez na minha boca.

- Engole isso logo aí trem.

- Dia desses, sabe, a última colherada, fingi que engoli e depois cuspi tudo no canto da cama logo que ela saiu do quarto. Agora eu tô magra, tá vendo mãe. Sempre quis emagrecer. Agora tô até parecida com ela; embutida, se crescida, crescida pra dentro.

- Sabe mãe, sempre vivi em pesadelo, dentro de um redemoinho. Por isso, no dia em que a senhora me disse que ia morrer, eu soube que nunca mais sairia de dentro dele. Naquela hora, em silêncio, afastei-me o mais rápido possível do quarto, mas o corredor do hospital ficou tão comprido e largo que não conseguia deixar dele. Alívio, só quando longe, muito longe, vi o meu pai. Então entendi que, naquele dia, sua hora de acordar a senhora também perderia.

- E se você voltasse filha, se falasse com seus irmãos?

- Meus irmãos... Meus irmãos foram cuidar de si, mãe. E eles não estão errados não. Afinal, não é assim que tem de ser? Outro dia, o Lúcio foi lá em casa visitar a gente, levou os meninos também. Aquela casa com cheiro de gente doente. Os meninos acho que nem sentiram aquele cheiro. Luís, o mais novo, esqueceu a bola no meu quarto. Logo a bola, mãe. Era uma bola grande, colorida. Fiquei dias olhando pra ela. Como aquela bola era bonita. Olhava pra ela e me lembrava da outra bola, a de quando pequena. Por que minha irmã não a tirava de lá? (pensei)

- Criança pode ter raiva, mãe?

Silêncio.

- Sabe o que eu fiz com a bola? A bola que o Luís esqueceu lá em casa? No meu quarto? Furei, furei essa também.

- Filha, seus irmãos.

- Todos os dias eu olhava pra ela e me lembrava de todas as vezes em que eu e minha irmã discutimos, dos palavrões, das agressões quase físicas, quase, da minha fraqueza. Assim, me esforcei e consegui sair da cama. Procurei nas gavetas uma tesoura, um estilete ou coisa parecida. Assentada no chão, com a bola entre as pernas, mãe, fiz o primeiro furo. Tomada por uma força descomunal, desferi vários golpes sobre a bola, retalhei-a com raiva, com força. Acho que imaginei minha irmã no lugar dela. Lembrei-me dos olhares de rabo de olho, dos resmungos. Ah, mãe, e as vezes que era obrigada a ficar calada por que ela detestava ouvir minha voz. Exausta, suada, arfando, via os pedaços coloridos que se espalhavam pelo chão.

*

Não sei quanto tempo fiquei ali a despedaçar a bola. Sei que me senti fortalecida depois. Fui invadida por uma energia que me fez sair de vez da cama. Acho que minha irmã nem entendeu a minha mudança repentina. Alimentei-me melhor, comecei a caminhar, ainda desequilibrada pelo quarto. Mal sabia ela que me preparava para deixar aquele lugar. E hoje, na hora em que ela saiu para fazer compras, alcancei definitivamente a maçaneta. Minha saída... marquei com retalhos que guardei da bola. Deixei a porta da rua aberta.

*

Quando voltou das compras e encontrou a porta da rua escancarada e viu os retalhos coloridos pelo chão, procurou a irmã pela casa. Como não a encontrou, foi até o lugar preferido dela. Ao avistá-la no alto entendeu o que pretendia fazer. Engasgou o nome da irmã quando essa tomou impulso.

Nesse momento, exatamente, nesse momento, teve certeza da mãe ali. De repente, sentiu sua blusa molhada. Fios de leite escorriam de seus seios agora e, pela primeira vez, ela chorou de verdade.

Jussara Santos

quinta-feira, 14 de julho de 2011

UMA GRINALDA PARA ROSEMEIRE


- Anda logo menina, vem lavar esse cabelo.

Detestava lavar cabelo. Minha mãe ligava o rádio, punha-o quase no último volume pra ninguém ouvir meu choro estridente enquanto ela ensaboava e desembaraçava meus cabelos. Eu chorava e cantava a um só tempo. Depois de lavar tinha de ficar ao sol pra secar, passar tutano, untar e esperar o pente quente ou chapinha. Ah, pra finalizar, havia ainda a longa trança que minha mãe pacientemente fazia e havia também a agradável visita do vento. Não sei como ele sabia, mas sempre, nesse momento, na hora de trançar o cabelo, o vento bom aparecia e tentava levar embora fios que ficavam pelo chão. A gente, minha mãe e eu, tentava agarrar o vento que ria e escapulia...

Quando da primeira menstruação levei o maior susto. Só podia ser doença grave aquilo. Corri. Gritei minha mãe dizendo que morria. Eu lá sabia que mulher menstrua, eu lá sabia o que era menstruação. Minha mãe me disse que era o jeito de eu passar de menina pra moça. Ah (!) então era assim? De um dia pro outro, como em um gesto de mágica, dormi menina, acordei moça. Tudo na vida seria desse jeito? Daí pra querer casar foi um pulo. Minha mãe não falou que eu já era uma moça, então... Imaginei vestido branco, é, tinha de ser branco, véu, grinalda, tios e tias, festa. Tachos e mais tachos de doce, bala de puxa, carne assada, farinha de pilão. Mas meu pai sempre dizia:

- Filha, moça que não casa virgem a grinalda pega fogo logo que ela começa a entrar na capela.

- Pega fogo? Do nada?

- Não é do nada, filha. Todo gesto, todo ato carrega sua consequência, é só uma resposta à ação realizada.

Ele dizia isso com uma certeza tão grande, com tal firmeza, que, por vezes, eu chegava a acreditar. Até me via passando as mãos sobre a cabeça com medo de vê-la em chamas um dia.

Meu vizinho colocou fogo no corpo, sabe. Dizem que teve uma desilusão amorosa e decidiu largar o mundo. Ele vivia sozinho por isso pode organizar tudo. Quando alguém deu o alarme já não dava mais tempo. Ele já se esturricava no terreiro. Durante muito tempo sentimos o cheiro de carne queimada que impregnou toda a vila.

Eu não. Eu não tomaria uma atitude dessas nunca, não teria coragem de me incendiar. Me entregar antes do casamento, muito menos. Sou controlada, sou comedida, não aos incêndios, depois não quero ficar falada como as filhas de Dona Gertrudes. Não, eu não.

*

Eu era toda certeza até o dia em que o vi pela primeira vez. Agora que já não era mais uma menina, podia participar dos sambas de roda que antes meu pai dizia ser pra adulto. Meu primeiro samba de roda e lá estava ele tocando tambor. Não sei se foram os olhos e os ouvidos da paixão, mas o fato é que nunca ouvi um toque de tambor como aquele, o tambor parecia falar. Com os olhos cravados em mim, ele tocava cada vez com maior intensidade, podia ver os músculos de seus braços e até sentir sua musculatura. Meu corpo experimentou algo diferente, um calor entre minhas pernas, o coração parecia saltar pela boca, seria efeito da transformação de menina em moça? Sentia-me tão quente que desejei lavar os cabelos, fui tomar um refresco de aluá.

Meu pai aprovava o namoro, ele era trabalhador, honesto e além disso, seguia as tradições musicais da família. Nós sempre nos encontrávamos no galpão onde ele trabalhava nos tambores. Perguntei, certa vez, se os tambores podiam falar e ele disse que sim. Disse-me que eles se comunicavam, diferente do amor, jogo de pergunta e resposta.

À noite, nas rodas, ele tocava pra mim e eu dançava pra ele. Fazia questão de deixar minha saia levantar para que, enquanto me sacudisse, ele visse minhas pernas e o movimento de meus quadris. Meu pai não gostava, dizia que exagerava na hora de dançar, que todo mundo olhava...

- A grinalda, filha, lembre-se da grinalda.

Um dia, quando fomos nadar no rio, quase perdemos a cabeça e ultrapassamos os limites, mas eu sou controlada, sou comedida, não vou ficar falada como as filhas de dona Gertrudes - repetia essas palavras todo tempo silenciosamente dentro de minha cabeça, mesmo quando ele enfiou a mão dentro de minha calcinha.

Minhas tias estavam felizes porque eu havia me apaixonado e ia me casar. Minha madrinha morria de medo de eu ficar como tia Eulália, “tadinha (dizia minha madrinha) não conseguiu ninguém”. Minha madrinha já havia enviuvado três vezes. Na família, dizem que ela sufocava os maridos com os enormes peitos que tem sempre que se cansava deles. Eu não acredito nisso, embora os peitos dela sejam mesmo muito grandes.

Quanto mais eu e ele nos conhecíamos e ficávamos mais próximos, o calor aumentava, um calor de incêndio, sabe. Evitava ir ao galpão e ficar sozinha com ele, eu não queria decepcionar a família. Minhas tias e minha mãe preparavam meu vestido, véu e grinalda. Aquele ornamento com flores ficava cada dia mais lindo. Não, eu não podia deixá-lo pegar fogo. Às vezes, queria voltar a ser menina, queria deixar minha mãe ensaboar e desembaraçar meu cabelo enquanto o rádio, no último volume, tocava uma música qualquer. Mas menstruei, fiquei moça e...

*

Um dia, ou melhor uma noite, fui para a casa dos meus tios e os vi de um modo bem diferente. Não conseguia dormir, assentei-me na cama e fiquei lá sem saber o que fazer, quando ouvi uns risos estridentes vindos da cozinha. Abri lentamente a porta do quarto e, sem fazer barulho, desci os degraus. Escondi-me atrás da divisória de tecido transparente.

Minha tia com o pilão entre as pernas socava alho e cebola. Meu tio estava assentado atrás dela, envolvendo-a com as pernas dele.

- Homem, presta atenção, tô preparando tempero, não vê?

Ele desarrumava os cabelos dela, soltava os grampos e cheirava sua nuca e pescoço.

- Tô cheirando a alho, não sente?

- Vamos mulher, larga isso pra lá.

- Mas homem, a menina, ela pode acordar.

- Não acorda não. Anda. (empurra o pilão.)

Enquanto insistia, enfiava as mãos por baixo da blusa dela e apertava-lhe os seios.

- Duriiiiiiiinhos (ele dizia rindo)

Ela punha as mãos sobre as mãos dele e as conduzia em semicírculos. De repente, um barulho.

- Eu não falei, homem. Eu não falei.

- Calma, mulher, calma, foi só um gato.

- E se ela acordar?

- Ela não vai acordar.

- Vem.

Ele a pôs assentada em uma das extremidades da mesa.

- Posso passar azeite na sua bunda?

Eu ri baixinho quando ouvi aquilo.

- Tá doido homem?

- Doido, por quê? Ah, vai, deixa. É só um pouquinho.

- Mas (já sentindo a mão do homem apertando-lhe as nádegas) E se...

Ele usou a língua dele para silenciar minha tia e deu-lhe um longo beijo na boca. Depois levantou a saia colorida dela. Minha tia adora colorido, de bruços, e com uma parte do corpo apoiada sobre a mesa, deixou-se lambuzar de azeite por aquele homem. Antes, meu tio beijou várias vezes a bunda de minha tia.

Eu não conseguia desgrudar os olhos deles. Enquanto ele a lambuzava de azeite dizia que aquela era a bunda mais bonita que já havia visto na vida. Duas montanhas mineiras, dois montes negros e assim com aquele brilho...

Não sei se a pele dos dois brilhava ou era o efeito da luz da lua que invadia a cozinha.

- Vem. (disse minha tia.)

Ele há muito sem camisa e com a braguilha aberta atendeu ao chamado. Nem se deram conta do som oco que a fruteira fez quando despencou rumo ao chão. Uma laranja semidescascada rolou feito novelo de lã.

O pouco que dormi naquela noite sonhei. Acordei com a calcinha nos meus tornozelos e molhada também de suor.

*

Voltei pra casa pensando nele, pensei nele toda a manhã. Será que nossa primeira vez seria assim, será que ele me lambuzaria de azeite ou de outro tipo de óleo ou essência. Perguntei a minha mãe como era a primeira vez de uma mulher e de um homem. Ela desconversou e disse que na minha hora eu saberia.

Assim, sabendo da minha hora, fui ao galpão naquela tarde e ele estava lá afinando os tambores. Eu estava linda (ele disse). Não lhe dei muito tempo para perguntar coisa que fosse. Dei-lhe um beijo na boca enquanto puxava suas mãos para debaixo de minha saia. Ele ainda atordoado, eu também, fez amor comigo ali entre os instrumentos musicais.

Antes de anoitecer fui pra casa. Quase esqueci meu arco de conchas e búzios. Corri de felicidade em meio a um bando de pássaros que saíram em revoada. Daí pra frente, nos víamos todas as tardes ora no rio, ora no galpão. Éramos somente sorrisos até eu começar a enjoar, a me afastar da comida, até o cheiro dele me dar náuseas. Parei de menstruar, mas não voltei a ser menina.

*

Decidi então procurar Dona Lurdes. Ela morava isolada de todos, quase nunca participava dos encontros festivos. Poucos gostavam dela na vila, diziam que ela era adivinha, meio bruxa mesmo. Além disso, ela fazia umas garrafadas..., dizem, para moças aflitas do vilarejo. Minha mãe não gostava dela.

- Garrafada? De jeito nenhum. (ele disse) Por que a gente não vai embora?

- Fugir? Não isso não. E depois, pra onde?

- Eu não sei.

- Ele nos acharia no mais longe que houvesse. Vou procurar Dona Lurdes, já decidi.

- Vou com você.

- Não, quero ir sozinha.

E fui. Cheguei, olhei aqueles portãozinho e cerca de madeira velha e podre. Havia tanto mato em volta da casa que dava até medo. Bati palmas, ela não apareceu. Nervosa, bati palmas novamente e gritei:

- Dona Lurdes, Dona Lurdes. Será que alguém me viu chegar aqui? (pensei de repente)

Quando ela surgiu, não tinha nada de bruxa. Era uma mulher comum que enxugava as mãos em um avental estampado, já que lavava as roupas na bacia que deixa atrás da casa. Abriu o portão:

- Entra minha filha, entra.

A casa era pequena, não chegava a ser um cômodo, mas parecia. As paredes estavam repletas de figuras de santo, folhinhas velhas e fitas coloridas. Em um dos cantos um radinho de pilha e um lampião de querosene. Do lado de fora, ficava o fogão improvisado e os troços de carvão. Ela assentou-se na cama e eu no tamborete. Segurou minha mão:

- Quer chorar filha?

Nem esperei o fim da pergunta. Chorei, chorei muito. Enquanto chorava, Dona Lurdes disse que gravidez (como ela sabia?) não era pecado, doença ou crime. Disse que eu estava apaixonada do mesmo modo que muitas mulheres no mundo. Da mesma forma que minhas tias e minha mãe.

Diria que da mesma forma que ela, mas Dona Lurdes não se apaixonou dia nenhum.

Quando menina foi levada, não se lembra bem por quem, até uma casa diferente. Ela não queria ir. No portão, depois das palmas, uma mulher apareceu, mandou que ela fosse pra dentro e pegou a sacolinha com as poucas roupas que levou. Nunca mais viu um sequer da família.

Lá fazia de um tudo. Lavava, passava, cozinhava, “até o dia em que estivesse pronta” era o que dizia a dona da casa. Custou a entender esse “pronta” de que ela falava. Também custou a entender o que aqueles homens faziam lá todos as noites. Com o passar do tempo, entendeu. Quando a dona da casa falou que estava preparada, o coração saltou-lhe pela boca. Saiu, correu estrada afora. Mas aquele fim de mundo não dava em lugar algum. Depois de muito parada na estrada, voltou. A dona da casa estava lá a esperar.

As colegas a arrumaram. Depois do banho, pentearam seu cabelo. Fizeram-lhe um coque, lambuzaram seu corpo com um creme de cheiro enjoativo. Limparam-lhe as unhas, usaram pedra pomes para amaciar a pele de seus pés.

A dona da casa disse a ela que naquela primeira noite não teria muitos clientes porque era a primeira, mas era só naquela. (“ter, eu não teria nenhum”)

Não se lembra de quantos homens a tiveram, mas lembra-se de que doeu, embora as colegas tenham jurado que não doeria. “Dói até hoje. A alma dói”. (ela disse)

O primeiro não tinha nada de especial. Suado, a bebida saía-lhe pelos poros. Lavou o rosto, os braços. Usou a água da pequena bacia de alumínio posta, a um dos cantos do quarto, por uma das colegas.

“Antes de partir pra cima de mim, cheirou os sovacos, sabe.” Ela disse que, enquanto ele falava “abre as pernas menina” e se satisfazia, ela olhava para uma folhinha com uma imagem de santo, que estava pregada na parede.

Mais tarde, depois que as luzes foram apagadas e todas dormiram, fugiu.

“Tive a impressão de que, no momento em que corria, me tornava menina de novo, aquela que foi deixada lá naquela casa, com aquela mulher. Corria, chorava. Meus pés pisavam em cacos de vidros. Vez em quando eles sangram, assim, do nada. Todos os homens que tive depois, não tive por amor ou paixão. Tive por raiva.”

- Por que a senhora não esquece. (perguntei)

- Esquecer? Certas lembranças não são pra ser esquecidas.

Saiu e voltou com a garrafada.

- Pense no que vai fazer.

Peguei a garrafa e saí.

- Moça. (ela gritou) Cuidado com o incêndio.

- Que incêndio?

Ela entrou lentamente em casa.

No caminho, parei e joguei fora a garrafada.

*

Em casa, fui recebida pelas mulheres da família. A mãe, as tias, as primas. Se as avós fossem vivas também estariam lá. Era uma festa onde homem não entrava, disse minha madrinha. Fizemos todos os tipos de brincadeiras e adivinhações. Não bebi, nem comi, fingi.

Respirei aliviada quando toda aquela gente foi embora. A mesa estava lotada de presentes e minha mãe disse-me que havia mais um. Foi até o quarto e, quando voltou, trazia nas mãos a grinalda. Era a coroa de flores, conchas e búzios, mais bonita que já havia visto.

- Toma, é sua. É a sua grinalda Rosemeire.

Não sei quanto tempo olhei aquela grinalda nas mãos de minha mãe. Tentei segurá-la mas não consegui. O choro que guardei durante toda a festa veio à tona, brotou todo de uma só vez. Assustada, minha mãe pôs a coroa de flores sobre a mesa, assentou-se ao meu lado e perguntou se eu estava preocupada com o casamento. Disse-me que eu podia perguntar o que eu quisesse, ela responderia. Com raiva falei:

- Agora né mãe. Agora que eu tô aqui desesperada a senhora responde o que eu quiser. Por que a senhora desconversou quando eu quis saber, por quê?

- Filha o que que tá acontecendo?

- Tô grávida, mãe, grá-vi-da. Grávida e desesperada.

- Grávida ( repetiu a palavra várias vezes) Mas você sempre foi controlada, comedida. Por que não esperou filha? Vai ficar falada como as filhas da Dona Gertrudes, e agora?

- A senhora está pensando nas filhas da vizinha? Eu me apaixonei, mãe. Foi isso, me apaixonei. A senhora também não se apaixonou? Ou não?

Minha mãe olhou pra mim com raiva, com o rosto quente.

- Fala mãe. Eu me apaixonei e me entreguei. Me entreguei com toda força e a senhora? A senhora se entregou, mãe?

Com raiva, ela partiu pra cima de mim e nós duas nos estapeamos várias vezes. Quando meu pai chegou reinava um silêncio pesado na casa. Os presentes ainda estavam sobre a mesa, inclusive a grinalda.

*

No dia seguinte, minha mãe decidiu que não contaríamos nada para meu pai. Até o dia do casamento a barriga não cresceria tanto. Muita gente fazia isso, nós também podíamos fazer. Depois de casados as coisas ficariam mais fáceis, segundo minha mãe. Concordei, mas meu pai estranhou meu jeito triste e quieto em casa e nas rodas de samba. Às vezes, nem dançava. Os tambores também pareciam mais tristes. Uma noite, próxima ao casamento, parecia até que um dos tambores chorava, reproduzia um lamento.

Eu queria contar, sabe. Sentia-me mal enganando meu pai, mas não contei, então...

*

A vila estava linda, toda enfeitada. Os tambores, cada um trazia um ornamento diferente. A capela era toda flor. Nervosa, fui arrumada pelas mulheres da família. Banho com ervas, colônia de flor de laranja, massagem nos pés. Respirei fundo na hora de colocar o vestido. Quando minha mãe ornou-me a cabeça com a grinalda, senti um leve arrepio, acho que mais pela força do vento que soprava lá fora. Nada daria errado naquele dia.

Mais cedo, antes de minhas tias chegarem, pedi a minha mãe que repetisse os gestos de quando eu menina. Pedi que ensaboasse e lavasse meus cabelos. Depois desembaraçasse, passasse tutano e usasse o pente quente ou chapinha. Ah, e a trança. Ela fez o que eu pedi, rimos muito e ainda brincamos com o vento que reapareceu e jogou de um lado para outro os fios de cabelo largados pelo chão.

Pronta, segurei a mão estendida por meu pai e seguimos para a capela. Tudo daria certo naquele dia. As portas da igreja se abriram, enquanto na beira do rio um grupo de pássaros saía em revoada. O altar parecia longe. O noivo também. Apertei a mão de meu pai e comecei a caminhar pelo interior da capela. Foi exatamente nesse momento, tal qual ele disse, que senti uma chama sobre minha cabeça. Soltei a mão dele. Em desespero, tentei retirar a grinalda em chamas, não consegui. O fogo aumentava e queimava meu vestido. Ouvia meu pai longe, muito longe, gritando meu nome. Vi meu vizinho se esturricar no terreiro. Dona Lurdes era uma imagem sacra no altar. Saí um verdadeiro incêndio da capela. Lá fora, pude ouvir direito meu pai. Acordei com ele assentado ao meu lado, na cama, balançando-me de um lado para o outro.

- Filha? Acorda filha. Foi só um pesadelo.

- Não pai, não. Tô grávida. Tô grávida. (ofegante e aflita)

*

Bem que achou o dia diferente, o pássaro agourento piava feito um louco. A mãe dele dizia que sempre que aquele pássaro cantava era mau presságio, sinal de coisa ruim. Mas ele não fez alarde como eu imaginei, sabe. Pegou a espingarda, deu um chega pra lá na minha mãe e, em silêncio, tomou o rumo do galpão. Minha mãe parada na porta. Um bando de pássaros em revoada. Um estampido. O grito estridente do agourento. Uma grinalda sobre a cama.

JUSSARA SANTOS

QUASE FIM


- Lembra da mortalha filho?

- Ah, é mesmo. Teve a mortalha.

Aquela havia sido a surpresa da manhã. A mulher chegou lá em casa e encomendou uma mortalha. Minha mãe costurava e já havia confeccionado todos os tipos de roupa, mas uma encomenda dessas?

Assentado no chão, não entendia o descontentamento de minha mãe com aquela encomenda, por isso, assim que a mulher foi embora, perguntei o que significava mortalha. Ela me explicou que se dá esse nome ao tecido que envolve o cadáver que vai ser sepultado.

- Aquela mulher vai morrer?

- Todo mundo vai morrer, menino.

- Não, quero saber se ela sabe o dia, a hora... Já que está encomendando a mortalha.

- Eu não ia perguntar isso, filho.

- A senhora vai fazer?

- Vou. Ela vai pagar, precisamos de dinheiro.

Fiz a tal da mortalha, mas só Deus sabe como. Todos os dias olhava para aquele tecido, lembra, era um cetim azul, não, era branco, não, era azul e brilhava. Não conseguia cortar o pano, imaginava a mulher envolta na mortalha, cheguei a sonhar com ela deitada no caixão rindo pra mim e toda azul acetinado; meu Deus, para com isso mãe. Acho que é porque enquanto tirava as medidas dela ( comprimento, quadril, cintura, altura) me senti um vendedor de funerária. Mas a senhora fez a mortalha, é, fiz. E ficou bonita a danada da mortalha. Pus uns detalhes, uns enfeites que a mulher nem havia pedido. É, eu me lembro, ficou bonita mesmo. Só que ela nunca apareceu pra buscar. A gente nem se perguntou o porquê, né mãe. É, não. Medo da resposta acho. Que fim a senhora deu na mortalha? Traça comeu? Ah, deixa essa conversa pra lá filho.

Sua irmã vem hoje? Sei não. Nem quero saber. Deixa disso filho. Família é família. Fala isso pra ela.

Ele sempre reclamou que ela não ligava pra nada que ele fazia. Ele quem mãe? Reclamava que ela não ligou pra escada toda de pedra que mandou construir no quintal, reclamava que ela não reparava no gramado e no jardim que ele mandava cuidar todo mês, nem na pintura nova da casa. Hum, e os livros, ele tinha paixão por livros. Quem, o papai? De vez em vez tinha de limpar toda a estante, envernizar, deixava os livros em repouso, ele dizia; depois voltava com todos limpos para o lugar, parecia um ritual sacro. A senhora está falando de quem?

Sua irmã vem hoje, filho? Sei não mãe, já falei.

Eu nunca gostei muito de ler confesso. Às vezes, ele ficava lá parado, primeiro olhava a estante e os livros, depois saía e observava o jardim, depois seu olhar se perdia, sabe. Eu acho que, nessas horas, ele estava sempre pensando nela, talvez ela gostasse de livros e de estantes, né filho? Ela quem mãe? Talvez ela desse atenção para jardim e flores e pedras e degraus, aquele olhar perdido, longe, só voltava quando sua cintura era envolvida pelos braços da realidade, infelizmente se contentava com ela.

- Lembra do vizinho, filho?

- Qual mãe?

- O que foi enterrado vivo.

- Não se sabe se ele foi enterrado vivo, né mãe.

- Na época, a polícia falou que achava que sim.

- Achava.

Um dos muitos de meus vizinhos triste com o casamento enamorou-se de uma outra mulher, dizem. Dizem que ela era casada. Um dia ele sumiu. Como era trabalhador, levantava muito cedo, madrugava mesmo e batia pontualmente o cartão, todos estranharam o seu sumiço. Hospital, nada. Amigos, parentes, colegas de trabalho, nada. Medicina legal, nada. Polícia. Esta, depois de seguir pistas como bilhetes que foram trocados com a mulher, marido da mulher etc. descobriu um corpo, uma cova que foi aberta meticulosamente muito tempo antes do sumiço dele e ele em pé, lá dentro, com as mãos postas em cruz sobre o peito. Porém, para todos os efeitos, para os mais velhos da família e para as crianças, ele foi atropelado em movimentada avenida da cidade.

Sua irmã casou, filho? Casou mãe, casou?

Nem deixou a gente fazer festa, né. É. Nem deixou a gente ficar feliz. Eu queria ter feito um chá de panela; isso não se usa mais, mãe. Bobagem, eu queria ter passado pra ela a cristaleira, o jogo de chá, e as taças filho, a gente ainda tem as taças? Como que foi mesmo filho? O que mãe? O casamento. Ela saiu num carnaval, não lembra? Saiu, é saiu. A gente podia ter feito um almoço ou jantar comemorativo. Mas ela sempre foi assim, a senhora sabe, nunca compartilhou decisões, as amorosas então. Mas eu fiquei feliz com o casamento, você não? (pausa) Eu nem tive tempo pra saber, mãe, não fui convidado, fui comunicado. Mas hoje ela vem? Não sei mãe, não sei. Se hoje ela vier, eu vou dizer pra ela que fiquei feliz.

Como a senhora quer o cabelo hoje? Pode trançar do jeito que você quiser, mas faz uma trança bem bonita, só não aperta muito, às vezes você aperta muito. Tá bom mãe.

E as cinzas, filho? Que cinzas, a da Semana santa, passa na minha testa, se tiver. E mãe, para de falar de cinza, de Semana santa. E de Páscoa, filho, posso falar de Páscoa, Páscoa é ressurreição. Época bonita pra morrer, né filho? Morre e renasce, tudo ao mesmo tempo. Chega, se continuar paro de fazer a trança. Tá bom.

A sogra não gostava dela não filho. Que sogra mãe? Acho que a senhora tá com febre hoje, mais tarde vou chamar o médico aqui. A sogra não gostava dela. Ela soube isso muito mais tarde, quando já dividia a mesma casa com ela. Dizem que ela preferia uma outra namorada, quase noiva, que ele teve. Ela morreu cedo, dizem que por causa de uma tentativa de aborto mal sucedida. Nunca perdoou o filho por isso. Ela também tinha suas esquisitices. Ela quem? (impaciente) A sogra. Saía escondida do marido e dizia para os filhos “se contar ferro quente na boca”. Onde já se viu uma coisa dessas? Que mãe faria isso com filho? O mundo tá cheio de gente esquisita mãe, o noticiário traz sempre. Não lê essas coisas pra mim não, viu filho.

E sua irmã que não chega. A senhora tá agitada e ansiosa, isso não é bom, mãe.

Quero ver sua irmã filho. Quero ver vocês dois juntos novamente. Faz tempo que não vejo isso. O que a senhora quer para o almoço, nada, tem de se alimentar mãe. Eu vou com esse vestido mesmo? Vai aonde mãe? Fica calma, a senhora já tá trocada, perfumada. Depois vou chamar o doutor aqui. Deixa eu te dar um beijo filho, olha, vê se casa também. Arranja alguém pra dividir vida com você, fica sozinho não. Mãe.

- Lembra da grinalda filho?

- Lembro

Só na nossa rua e no nosso bairro mesmo pra alguém ver grinalda voando. Deu um vento naquele dia lembra. Nossa, ventou demais. E a Eulália, mãe, correndo atrás da grinalda, tentando pegar. Eu ri muito, eu não conseguia parar de rir. Eu achei que ela fosse ser levada pelo vento. Isso é que era vontade de casar. Mas ela não pegou a grinalda nem casou. E o agourento que piou na hora daquele vento todo. Nossa, chega a me dar arrepios. Imagino mãe o que teria acontecido com a dona daquela grinalda. É, eu também.

Lê um poema pra mim, filho. Agora? É agora. Mas não sei assim de improviso, tem de ensaiar mãe. Você ensaia muito filho, por isso não vive. Lê filho. Que poeta a senhora quer hoje, Cecília, Drummond, quem? Você filho. Lê um dos seus. Eu não sou poeta mãe. É, sua irmã sempre disse que você é um poeta e dos bons. Minha irmã disse isso? Ela nem lê o que eu escrevo. Ela sempre leu escondido. Ela mexia nas minhas coisas? Ela lia os seus poemas, é diferente filho. Lia pra mim com uma voz suave, tranquila. Lê filho, escolhe um e lê. Não, vou ler o de outra pessoa, tá bom, filho, tá bom.

Oh, eu não quero ir com esse vestido, já falei. Ir pra onde?

Lembra do incêndio? Não. Que incêndio? O que destruiu a alfaiataria. Não lembra, ele emagreceu tanto na época. Todos os panos perdidos. E os ternos já quase prontos. Tudo queimado. Ficamos sem nenhum dinheiro, não fossem os amigos, sei não. Ah memória, maldita memória. Não queria me lembrar de certas coisas, não sei porque não a perco, tanta gente perde né filho, ele mesmo. Todo dia mostrava as fotos pra ele, do nosso casamento, do seu batizado, do casamento da sua irmã. Não há fotos do casamento da minha irmã, mãe. Ah, é. Mas eu não desisti, mostrei as fotos até o dia em que ele não reconheceu mais ninguém.

O que você faria se eu deixasse de reconhecer você, filho?

(silêncio)

Lembra do bolo de laranja, você adorava aquele bolo. Faz pra sua irmã filho, ela já deve tá chegando. Eu não sei cozinhar. Pega o papel e anota a receita, eu não vou fazer bolo pra minha irmã, ih... Pega farinha de trigo, quantas xícaras mesmo filho... duas, é são duas, a mesma quantidade de açúcar, caldo de laranja, ah, filho, os ovos não se esqueça, são seis, eu acho, não me lembro, e o fermento. Bate o açúcar com as gemas, mistura o caldo de laranja e bate, depois é só juntar a farinha peneirada, as claras em neve, o fermento, colocar em forma untada e assar. Sua irmã adora chá de erva doce, faz chá de erva doce ou então alecrim.

Outro dia sonhei que meu seios estavam cheios de leite filho, vê... Será que sua irmã tá grávida...

Lembra da Sofia, não saía de nossa casa, era tão curvada que quase beijava o chão. Será que aquilo era peso das coisas que fez na vida, nossa, quanto peso ela carregava.

Olha filho, eu hoje não tô boa não, assim que sua irmã chegar entrega a carta dela pra ela. Que carta? Escrevi, há algum tempo, uma carta pra você e outra pra sua irmã. Não fica zangado comigo se descobrir coisas a meu respeito que nunca imaginou. A senhora tá falando de um jeito.

Ouvi o agourento hoje e ainda sonhei novamente com as tripas, não viu que acordei gritando.

Nunca sei dizer quanto tempo caminho segurando aquelas tripas nas minhas mãos. Elas estão sujas de areia e meu suor se mistura à areia e às tripas. Minha roupa é um misto de sangue e barro. De repente alguém grita meu nome e sem olhar para trás corro, corro muito e já que a rua não tem calçamento escorrego barranco a baixo. Enquanto desço o barranco, esfolo braços, costas, pernas e as tripas continuam lá, seguras pelas minhas mãos. Quando enfim paro de escorregar, lá no final do barranco, ele está olhando pra mim e, com o corpo oco, sorri. Estende as mãos pedindo as tripas... Eu tento acordar, juro que tento, mas meus olhos não abrem, sinto que busco alcançar o relógio talvez, mas algo me puxa e eu grito.

É sempre o grito que ecoa pela casa que me faz acordar toda molhada de suor. Não sei se ele tem medo de dormir, mas eu tenho, sabe, porque já faz algum tempo que, depois de algumas horas de sono, vejo-me a correr segurando aquelas tripas.

Esquece mãe, vai ficar tudo bem. Quero te pedir duas coisas filho, primeiro diga coisas boas a sua irmã, entregue a ela a carta dela, está na primeira gaveta da cômoda, junto a sua. Depois, sabe o baú que fica na sala, sei, há muitos guardados lá. Mas há um guardado especial. Qual mãe? A mortalha filho, a mortalha. Ah não mãe isso não. Calma filho, vai ficar tudo bem. Passa arnica nos meus pés, não quero ir com os pés doendo, não sei se a caminhada vai ser longa. Não quero ir com esse vestido também não. Quando a mulher não veio buscar a encomenda, pensei: e se ela não existisse, e se ela veio, na verdade, trazer a mortalha pra mim, guardei e esperei a hora de usar. Se não servir, manda ela assim mesmo comigo. Minha irmã é sempre poupada não é mesmo. (ele pensa) Filho, e a arnica, vai buscar, vai...

Quando entrou no quarto com a infusão de arnica, ela parecia dormir tamanha era sua serenidade. Passou arnica nos pés da mãe. Vestiu-lhe a mortalha, era mesmo de um azul acetinado.

Lembrou-se, maldita memória, de que depois da confecção da mortalha a mãe costurou cada vez menos, deixou de pegar encomendas, nem os tapetes de fuxico que fazia com as sobras de pano ela animava confeccionar. Um dia recolheu os tecidos e retalhos coloridos e doou a uma vizinha. Muito depois, soube que ela havia dito, quando da entrega dos panos à vizinha, que não costuraria mais.

Com raiva, ele abre a primeira gaveta da cômoda e pega as cartas. Embaixo de algumas roupas da mãe havia uma foto envolvida em papel de seda, amarelada, não dava para ver muito bem o rosto da pessoa, atrás apenas uma dedicatória: com amor Egídio. Na sala, põe as duas cartas sobre a mesa, iam ficar ali até decidir o que fazer com elas. Lentamente pega o vaso com flores e lança-o com toda a força na cristaleira. Lá fora alguém bate palmas, na sala, cacos e mais cacos rolam pelo chão.

Jussara Santos