Ruídos
Ah, essa coisa de acordar todos os dias,
espreguiçar, investigar o quarto canto por canto, para ter a certeza de que de
fato acordou e de que está de fato ali, sempre ali, no mesmo lugar; assentar-se
na cama, refletir se põe os pés no chão, se calça os chinelos; ah, esse corpo
sem excessos de gordura ergue-se pesado, caminha até a janela, abre as cortinas
e lá está o sol, esse maldito sol, sempre esse sol; depois, chega até a porta
do quarto, encosta o ouvido nela tentando identificar os primeiros barulhos da
manhã, nada de rádio ou tevê, no banheiro apenas o som da descarga, a água da
pia; na cozinha, o apito, o leite, a chaleira, a água quente do café talvez
tenha caído dentro da garrafa térmica e
essa água em fervura faz coro com o ambiente que parece em eterno estado de
ebulição; outro alguém levanta e com ele a torturante ausência de bom dia ou
coisa que valha; o filtro, a água do filtro e aquele beber dele cada dia mais
lento, cada dia mais devagar; ah, mas, e
se de olhos fechados, o som daqueles intermináveis goles d’água lembrarem a
você uma fonte, um barulho de rio te afastando da chaleira, do café que, distraído, ultrapassa
os limites da garrafa e molha a mesa, caindo gota a gota no chão, provocando o
enérgico bater da porta do armário, a raivosa toalha de papel; a faca bate no
prato quando uma maçã é partida ao meio e o atrito dela em certos dentes parece
querer dizer do quanto eles são saudáveis; não se diz palavra naquele lugar,
mas rangem-se dentes, tritura-se toda a ordem de frutos e cereais, corpos
passam rentes, quase se esbarram, quase...
já o sol, esse não faz cerimônia,
entra e sai por todos os poros que encontra e em segundos cada qual
segue caminho, chaves na porta cerram o silêncio.
Jussara Santos
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