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quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Conto



Eudora, assim se chamava a cidade cuja personagem dizia que a definir “seria como dançar sem música”. Não vivo em Eudora, talvez nem gostaria. A cidade onde vivo não é pacata feito aquela. Vivo em uma cidade grande, barulhenta, encalorada. Nela predomina um estado de sudorese, um suor excessivo que define o odor de seus habitantes. Feito o odor dela. 
Ela era percebida pelo cheiro. Todos os dias era assim. Chegava do trabalho e  vinha ela com pressa, na tentativa de me impedir de fechar o portão. Quase, quase esmagava a mão dela tentando ser mais rápida, e era.
Ela me pedia comida. A conversa era a mesma todos os dias.
- Tô com fome, dona.
Dona, odiava que me chamasse de dona. Dona é a vó... eu tinha vontade de dizer. Mas ela era pobre. Mas ela vivia na rua. Mas ela não tinha nada...
- Ninguém me dá comida. Dona, tô pedindo des lá debaixo. Ninguém abre a porta pra mim. Me dá um prato de comida, dona.
Acho que ela sabia que odiava o tal do dona, já que repetia tantas vezes, feito um disco arranhado,  a palavra maldita.

Mas, hoje, vindo pra casa, depois de aturar o insuportável do meu chefe, os insuportáveis dos meus colegas. Depois de sentir calor o dia inteiro. Depois de ver seu Apolônio, o porteiro, com sua camisa empapada de suor. Depois de sentir meus pés inchando, minhas pernas inchando. Depois de entrar nesse ônibus lotado. Depois de não achar lugar para assentar. Depois de pisarem no meu pé. Depois de um ou uma sem educação desafogar seu gás bem aqui em meio a essa multidão. Depois... Pensei... se ela estiver lá, e estaria, com seu mau cheiro, com suas unhas esmaltadas na sujeira e sua fala mansa pedindo comida, sei não, sei não...

- Deus nos testa todos os dias, de diferentes formas. (Dizia minha vizinha beata.)
- Não devemos negar água nem comida a ninguém. (Devia dizer outro vizinho.)

O calor não nos deixa racionar. Descer de um ônibus lotado é que é como dançar sem música. Quem tem obrigação de dar comida pros outros? Me conta, quem? Por que não procura emprego? Por que não faz um bico? Meu vizinho diz que esse povo não gosta mesmo de trabalhar. Povo, que povo? 

Eu ando cansada, cheia, cheia de aturar. Subo a rua e sinto a presença dela. Um cheiro nada adocicado. Dela ou meu? Ai que vontade de tomar banho, de tirar o odor de tanta gente da minha pele, feito político depois que abraça eleitor. Minha rua parece uma esteira rolante. Cada passo que dou, pareço que dois eu volto. A casa cada vez mais distante. Minhas pernas pesadas não me deixam andar com a pressa que gostaria. Ai, alguém trucida meu chefe, por favor. Outro dia, em pleno sonho, tentei cuspir nos meus colegas, mas acho que não consegui. Meus pés. E se hoje ela for mais rápida do que eu. E se entrar na minha casa, remexer as minhas coisas. Descobrir meus guardados, meus segredos.

- Abrir a porta, é abrir o coração. (Teria filosofado alguém...)

Pensei que eu também devia ser percebida pelo cheiro, pois assim que me aproximei de casa, ela ergueu a cabeça e preparou-se para disputar comigo a chegada ao portão. Meu corpo pesado, minhas pernas, meus pés, tive de fazer um esforço grande, as chaves quase escorregam das minhas mãos suadas. E se um dia eu é que precisasse pedir? Abri o portão com pressa e com raiva e esperei que chegasse perto, mais perto, pertíssimo e esmaguei, é, desta vez, esmaguei a mão dela no portão.

Jussara Santos – Janeiro 2013

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