Eudora, assim se
chamava a cidade cuja personagem dizia que a definir “seria como dançar sem
música”. Não vivo em Eudora, talvez nem gostaria. A cidade onde vivo não é
pacata feito aquela. Vivo em uma cidade grande, barulhenta, encalorada. Nela
predomina um estado de sudorese, um suor excessivo que define o odor de seus
habitantes. Feito o odor dela.
Ela era percebida pelo cheiro. Todos os dias era
assim. Chegava do trabalho e vinha ela
com pressa, na tentativa de me impedir de fechar o portão. Quase, quase
esmagava a mão dela tentando ser mais rápida, e era.
Ela me pedia
comida. A conversa era a mesma todos os dias.
- Tô com fome,
dona.
Dona, odiava que
me chamasse de dona. Dona é a vó... eu tinha vontade de dizer. Mas ela era
pobre. Mas ela vivia na rua. Mas ela não tinha nada...
- Ninguém me dá
comida. Dona, tô pedindo des lá debaixo. Ninguém abre a porta pra mim. Me dá um
prato de comida, dona.
Acho que ela
sabia que odiava o tal do dona, já que repetia tantas vezes, feito um disco
arranhado, a palavra maldita.
Mas, hoje, vindo
pra casa, depois de aturar o insuportável do meu chefe, os insuportáveis dos
meus colegas. Depois de sentir calor o dia inteiro. Depois de ver seu Apolônio,
o porteiro, com sua camisa empapada de suor. Depois de sentir meus pés
inchando, minhas pernas inchando. Depois de entrar nesse ônibus lotado. Depois
de não achar lugar para assentar. Depois de pisarem no meu pé. Depois de um ou
uma sem educação desafogar seu gás bem aqui em meio a essa multidão. Depois...
Pensei... se ela estiver lá, e estaria, com seu mau cheiro, com suas unhas
esmaltadas na sujeira e sua fala mansa pedindo comida, sei não, sei não...
- Deus nos testa
todos os dias, de diferentes formas. (Dizia minha vizinha beata.)
- Não devemos
negar água nem comida a ninguém. (Devia dizer outro vizinho.)
O calor não nos
deixa racionar. Descer de um ônibus lotado é que é como dançar sem música. Quem
tem obrigação de dar comida pros outros? Me conta, quem? Por que não procura
emprego? Por que não faz um bico? Meu vizinho diz que esse povo não gosta mesmo
de trabalhar. Povo, que povo?
Eu ando cansada, cheia, cheia de aturar. Subo
a rua e sinto a presença dela. Um cheiro nada adocicado. Dela ou meu? Ai que
vontade de tomar banho, de tirar o odor de tanta gente da minha pele, feito
político depois que abraça eleitor. Minha rua parece uma esteira rolante. Cada
passo que dou, pareço que dois eu volto. A casa cada vez mais distante. Minhas
pernas pesadas não me deixam andar com a pressa que gostaria. Ai, alguém
trucida meu chefe, por favor. Outro dia, em pleno sonho, tentei cuspir nos meus
colegas, mas acho que não consegui. Meus pés. E se hoje ela for mais rápida do
que eu. E se entrar na minha casa, remexer as minhas coisas. Descobrir meus
guardados, meus segredos.
- Abrir a porta,
é abrir o coração. (Teria filosofado alguém...)
Pensei que eu
também devia ser percebida pelo cheiro, pois assim que me aproximei de casa,
ela ergueu a cabeça e preparou-se para disputar comigo a chegada ao portão. Meu
corpo pesado, minhas pernas, meus pés, tive de fazer um esforço grande, as
chaves quase escorregam das minhas mãos suadas. E se um dia eu é que precisasse
pedir? Abri o portão com pressa e com raiva e esperei que chegasse perto, mais
perto, pertíssimo e esmaguei, é, desta vez, esmaguei a mão dela no portão.
Jussara Santos –
Janeiro 2013
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