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quinta-feira, 29 de abril de 2010

conto

Das duas palavras ditas ao coronel

Jussara Santos

y las miro lejanas mis palabras.

Más que mías son tuyas.

Van trepando en mi viejo dolor como las yedras

Ellas trepan así por las paredes húmedas.

Eres tú la culpable de este juego sangriento.

Ellas están huyendo de mi guarida obscura.

Todo lo llenas tú, todo lo llenas.

(...)

Pablo Neruda

Ela se perguntava, ao final da leitura de Dos palabras, conto de Isabel Allende, quais teriam sido as duas palavras ditas por Belisa Crepusculario ao Coronel, depois de entregar-lhe o discurso pronto. Quais teriam sido? Quais poderiam vir a ser? Ela não sabia, mas talvez isso nem importasse muito.

Certo é que aquelas duas palavras, uma vez pronunciadas ao ouvido do Coronel, pareciam querer pertencer a ele e o enfeitiçaram, tomaram conta de seu corpo, cérebro, alma e o Coronel nunca mais fora o mesmo. Dominado pelo poder das duas palavras, ele uniu-se a Belisa Crepusculario.

Mas a leitora do conto de Allende não se chamava Belisa, nem buscou vestir-se com um nome especial. Talvez ela se chamasse Elza, Teresa, Maria. Talvez não se chamasse. A verdade é que queria ter em comum com Crepusculario o dom de vender palavras. Ah, se soubesse vendê-las, venderia, assim como Belisa, qualquer uma. Venderia palavras de amor, de ódio, de compaixão. Venderia palavras alegres e palavras tristes, palavras de todas as cores, confortando alguns e a outros entristecendo. Assim, viveria.

Como não sabia vendê-las, queria então ouvi-las. Queria escutar as duas palavras ditas ao ouvido do Coronel. Desejava que aquelas especiais palavras lhe invadissem o cérebro, o corpo, a alma e ela então se deixaria consumir por elas e, quem sabe, por quem as trouxesse; por isso, seguiu buscando ouvi-las.

I

A sensação de que a primeira palavra estava próxima chegou-lhe num dia amarelo-ouro. Era sábado, o sol estava quente e o dia parecia de um dourado todo especial.

Tudo aconteceu no burburinho do mercado, na confusão geral de toda aquela gente comprando, pechinchando, indo e vindo, escolhendo. Ela procurava artigos para uma oferenda, espelho, flor, leque, perfume, bijuteria, sonhando encontrar a palavra dourada. Em meio àquela procura, enquanto buscava incensos, mirra, defumadores, misturas sagradas e toda a sorte de ervas e banhos aromáticos, sentiu o cheiro do pêssego.

Ali, bem atrás dela, estava ele, um vendedor de pêssegos. Enquanto os oferecia às pessoas, ele mastigava um, mordendo com toda força o tecido carnoso da fruta. Manteve, por algum tempo, o caroço em sua boca, como se não quisesse perder nada daquele sabor. Depois cuspiu-o fortemente, atirando-o bem próximo ao pé da mulher.

Movida pelo desejo de saber se estava ali a sua primeira palavra buscada ou quem sabe as duas, ela abaixou-se e pegou aquele caroço. O homem, que a observava, tentava limpar a boca com as costas da mão. E agora reinava ali toda a sorte de cheiros e odores. Todas as frutas vendidas no mercado pareciam ter naquela banca se convertido e o lugar cheirava a pitanga, goiaba, manga, o cheiro adocicado do mel, o cheiro forte de cigarro, cheiros, cheiros, cheiros... Até o cheiro da gasolina entrava lá de fora, o gás, os combustíveis.

O homem olhava direto para os seios dela que, debaixo do seu transparente vestido amarelo, estavam intumescidos como os pêssegos e pareciam apontar para os lábios daquele homem, talvez ainda molhados pelo líquido que escorrera da fruta.

Assim, com o sol, não se sabe como, invadindo, iluminando todo o mercado, com as pessoas, não se sabe o porquê, paralisadas, ela acompanhou o homem, aquele desconhecido que caminhava sem pressa, exuberante, parecendo fazer manifestar em si uma força vital, força e presença.

Desejando encontrar as suas especiais palavras, aquelas que nos roubam o espírito e nos transportam para outros mundos e galáxias, ela deixou-se pegar por aquele desconhecido bem ali, em um canto qualquer e escuro do mercado. Em meio a muitas caixas que também deviam estar trazendo toda a ordem de cheiros e aromas , ela, em pé, prensada na parede pelo homem, sentiu as suas grossas mãos surgirem por baixo de seu vestido e, enquanto ela passava os braços em volta do pescoço dele e enlaçava a sua cintura, sentia o homem entrar com toda a força dentro dela e, como um machado, cortá-la com a energia de um trovão.

O homem gemia, ela gritava e mordia a mão do homem que, vez por outra, resvalava em sua boca. Mas ela queria, buscava as suas especiais palavras e enquanto o homem arfava, babando pêssego no seu pescoço, ela implorava:

- Diga, diga as palavras. Diga ao menos uma palavra, a minha palavra, não a guarde só para si. Se me disseres, se me deres a palavra, ela será a nossa palavra, a nossa...

Extasiado, o homem soltou-a e enquanto ajeitava a roupa e o emaranhado dos cabelos disse não saber e não ter a tal palavra. Talvez ele também estivesse desejando uma especial.

Sentindo-se traída pela luminosidade daquele dia, ela deixou-se invadir novamente pelo burburinho do mercado que, pouco a pouco, parecia acordar. Enquanto o homem caminhava de volta à banca e o mercado ganhava vida novamente, ela, atordoada, ajeitou o vestido. As tranças haviam soltado e ela as arrumou. Na loja, apanhou as mercadorias, as flores, o incenso, o perfume e levou ainda o jarro de barro, com o qual sonhara. Lá fora o dia parecia mais dourado do que nunca e, em meio aos carros na avenida, ela pensou ter visto o Coronel a cavalgar, a cavalgar as suas duas guardadas palavras.

II

E por que não poderia ser o Coronel a cavalgar? Uma vez que lhe foram dadas duas importantes palavras e elas lhe tomaram o espírito, não seria correto que ele também oferecesse palavras a uma outra pessoa, dando seqüência a um círculo, o círculo daqueles que recebem e por isso também doam palavras? Ela não tinha respostas, apenas perguntas. A verdade é que continuava buscando, querendo, desejando.

Mas as palavras não lhe vieram pelo sabor dos pêssegos, nem pela presença desejada do Coronel. Talvez as palavras nem lhe tenham vindo. Porém, a vontade de possuí-las era tanta que acreditou tê-las recebido, certo dia, no coração da cidade.

Acreditem, ventava, ventava muito. As palavras lhe chegaram enquanto descia a escadaria da igreja. Não havia missa, mas os sinos começaram a tocar e, de repente, junto com eles, toda a sorte de outros ritmos e sons. A ventania trouxe consigo uma chuva forte e enquanto as pessoas corriam para se proteger, ela ficou parada ali, em um dos muitos degraus da escadaria da igreja, observando os raios que cortavam o céu, ouvindo os relâmpagos, vendo a variedade de cores que se formavam agora: o vermelho, o amarelo, o azul...

Ouvia a buzina dos carros, os gritos das pessoas, as músicas nas lojas de discos que lhe chegavam misturando o pagode ao samba, o reggae ao jazz, o jazz ao blues, o blues ao axé. Eram tantos os sons naquela tarde cinza e vermelha que seus ouvidos pareciam carregar tambores para dentro de sua cabeça.

Atônita, assentada naquele degrau, ela viu o Coronel. Tinha certeza, era o Coronel exibindo suas duas palavras do alto do monumento central da cidade. Inflamado, o senhor das palavras não fazia caso da chuva, dos trovões nem dos relâmpagos, por isso não se deu conta da aproximação de um raio que caiu certeiro atingindo e tragando as suas duas guardadas palavras. Assim, ali, já caída em um dos degraus da igreja, ela ouvira, finalmente, o que chamou de suas especiais palavras. Sopradas no seu ouvido, elas lhe invadiram o espírito e já não mais pertenciam somente ao Coronel, nem a Belisa Crepusculario.

(Este conto integra a coletânea De flores artificiais)

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